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Dialética, Dualismo e Tensão

Na tentativa de entender melhor o dualismo conforme apresentado por Francis Schaeffer nA Morte da Razão, desenvolvi uma pesquisa em Dooyeweerd (Raízes da Cultura Ocidental) e na dialética hegeliana (Uma Breve História da Filosofia Moderna, Roger Scruton). Entender Hegel e Dooyeweerd não é lá muito fácil, mas vamos ver no que isso pode dar.
- Absoluto e Relativo:
Por Absoluto, temos a base ateórica do conhecimento. O ponto de chegada e o de partida de toda a reflexão, que só pode ser descrito em termos de Alegoria. O Absoluto, por seu caráter Universal, assenta-se na base do conhecimento e não pode ser elucubrado pela limitada mente humana. Fala das Origens e é a matriz basilar de toda a reflexão. Por essa razão, Dooyeweerd considera que todo o Absoluto só existe dentro do espectro religioso. Seria a base epistemológica pressupocional - e depende exclusivamente da fé.
"Tudo começa e termina no mitopoético.” José Monir Nasser
Por Relativo, temos o conhecimento teórico, aquilo que pode ser perscrutado pela dialética. A filosofia, enquanto sistema, limita-se a lidar e elaborar os Relativos, pois, por seu caráter Particular, estão acessíveis à racionalidade humana. O Sentido último de todo o Relativo depende de este encontrar-se no Absoluto.
Para Sartre, a questão mais difícil da filosofia é a comprovação de que "algo existe". De fato, o Ser, em última instância, não pode ser explicado ou vislumbrado - apenas posso avaliar os Relativos que "estão". O Ser precisa ser pressuposto.
- A Lógica Clássica:
Schaeffer advoga que a lógica de Antítese imperou no pensamento ocidental até, mais ou menos, Kant. Esse método é bastante simples e pressupõe absolutos: A não é Não-A. Dessa perspectiva, sempre que eu penso em determinado conceito, preciso me assegurar de seu oposto, de sua antítese - quando cogito sobre a "Verdade", sou levado à categoria da "Mentira", antítese que propicia o entendimento teórico de Verdade. Noutras palavras, é inescapável o fato de que, ao suscitar a ideia de "Mentira", eu também eleve o conceito de "Verdade" - a Afirmação carrega a Negação; a Presença de um, supõe a Ausência do outro. A Verdade, enquanto pressuposto absoluto, contudo, é incomunicável com a Mentira: se algo é Verdadeiro, não pode ser igualmente Mentiroso. A lógica clássica, portanto, ocupa-se basicamente no "É não é não-É", possibilitando a disputa acerca dos Absolutos, dos Universais.
Pode-se pensar nos termos de lógica clássica, ainda, em Matéria não sendo Imatéria, em Vida não sendo Morte, em Tudo não ser Nada, em Dia não ser Noite. Não é possível extrair um ponto em comum entre Absolutos Opostos (não há intermediário entre Verdade e Mentira), mas pode-se discernir algo partilhado entre Relativos Opostos (para entender o "Rápido", preciso saber o que é "Lento", e entre eles há a necessidade primeira de "Movimento", por exemplo). A seguir desenvolveremos esse tópico.
- A Dialética Hegeliana:
Entre A (Tese) e Não-A (Antítese), temos a Síntese, sustenta Hegel em sua dialética. Assim sendo, no pensamento hegeliano procura-se chegar a um consenso dialético entre dois opostos, algo tido em comum, um ponto mais elevado na natureza das coisas. Essa modalidade de pensamento é útil para a análise dos Relativos. A universalização desse sistema de lógica, precisamente o que Hegel advoga, contudo, ao tentar promover a diatélica também entre os Absolutos, relativiza todas as coisas, anulando os Universais ao submetê-los ao nível dos Particulares, uma vez que o Absoluto e sua Antítese são forçadamente condensados numa Síntese.
Tomando a partícula cartesiana do "Penso, logo existo", que consolida a ideia de que o Ser Pensante existe, a dialética hegeliana propõe uma síntese: o oposto de Ser é Não-Ser, e a Síntese está em "tornar-se", uma vez que o Ser surge do Nada e imerge no Nada. Assim sendo, o pressuposto absoluto de que Algo É, é abolido e tornado relativo na figura do "Processo". Uma vez que a partícula primeira de toda a reflexão, que é a pressuposição do Ser que Pensa, perde consistência enquanto Absoluto, todo o mais é relativizado e nenhum outro Absoluto pode ser vislumbrado. Apenas os Particulares transitórios.
- A Tensão Dialética:
O Absoluto sempre exigirá a hegemonia. É impossível que o Absoluto e sua antítese formem um todo monolítico - a Verdade Absoluta não pode coexistir com a Mentira Absoluta. Pela lógica clássica, é impossível encontrar uma síntese entre as duas promovendo a dialética entre Verdade e Mentira. Assim como seria impossível dialogar o Ser e o Não-Ser, uma vez que se Algo Há, ele não pode ter em si nenhuma partícula de inexistência.
A dialética hegeliana, como já dito, é salutar quando trabalhamos com Relativos: Movimento (Tese) - Repouso (Antítese) = Ser (Síntese), uma vez que para algo mover-se ou entrar em repouso, é necessário que Exista. Tanto Movimento quanto Repouso, por não serem Absolutos Opostos, conversam entre si e pressupõem-se. O que não pode acontecer entre Absolutos. Não pode haver um Núcleo Final de Verdade e, ao mesmo tempo, Nada ser Verdadeiro.
O erro da dialética hegeliana, nesse sentido, está em procurar uma Síntese entre o Absoluto e a sua Antítese. O único universal que sobra, aqui, é a própria dialética.
- Paganismo e Idolatria:
O paganismo, em Dooyeweerd, acontece quando se Absolutiza o Relativo, quando uma Parte do Todo é retirada de sua posição e elevada ao nível Totalizante, fazendo-se um ídolo que exigirá a conformação da complexa realidade ao seu sistema simplista - uma vez que o Particular não pode, em hipótese alguma, conter o Sentido Último de toda a realidade.
O que temos no paganismo, portanto, é o Dualismo: dois polos antagônicos em tensão dialética. Sem possibilidade de Síntese, a tendência é a aniquilação da Tese ou da Antítese.
- A Tensão Pagã:
Pela lógica da Antítese, todo o conceito suscita um contrário, um "não-ser". Entre Absolutos, não pode haver síntese dialógica, entre Relativos, sim. Quando, contudo, eu Absolutizo o Relativo, elevo ao nível de Absoluto também a sua Antítese - e aquilo que, dentro do sistema, da rede da existência, conseguia dialogar, agora invariavelmente irá se anular. Assim, todo o paganismo se constitui na Tensão Dialética entre Absolutos Opostos, consumando uma distorção da realidade.
Um exemplo está no dualismo platônico: a percepção de que toda a realidade é constituída de formas e princípios matemáticos, supõe que a Matemática e as Formas sejam normas que transcendem o próprio mundo, acessíveis apenas pela Razão humana. Uma vez elevado o aspecto Imaterial, ou Racional, ao nível de Absoluto, imediatamente se Absolutiza o seu oposto, que é a Matéria, o ente Irracional. Antes de elevada a Razão ao nível universalizante e totalizante, como veículo capaz de clarear o Sentido de todas as coisas, a racionalidade articulava-se ao mundo natural numa relação de interdependência - não se pode pensar sem perceber "aquilo que está aí". Essa troca pode ser chamada de Dualidade, que é diferente de Dualismo: na Dualidade, duas substâncias Relativas distintas conseguem se encadear num Todo, Dialogar numa Síntese mais Elevada.
Em suma: para definir-se Razão, suponho o Irracional. Se Absolutizo a Razão, necessariamente Absolutizo sua Antítese. Se a Razão se propor totalizante, requisita a aniquilação do Irracional - ou o Irracional, a supressão da Razão. É impossível que a Razão Totalize enquanto sua Antítese Dualizar, contudo, é igualmente inviável a conceituação de Razão sem seu Oposto. 
- Os Motivos Religiosos da Cultura Ocidental:
Dooyeweerd elenca quatro Motivos Básicos da Cultura Ocidental, constituídos, todos, de Absolutos:
1 - O Bíblico: Criação-Queda-Redenção (não dualístico)
2 - O Grego: Forma x Matéria (dualístico)
3 - O Católico-Romano: Graça x Natureza (dualístico)
4 - O Humanista: Liberdade x Natureza (dualístico)
O Motivo Bíblico não é dualístico, pois não eleva nenhum Relativo ao nível de Absoluto e, portanto, não Absolutiza a Antítese de nenhum Relativo. Ele parte, simplesmente, do Princípio da Origem, do Deus Criador que dá sentido para todas as coisas. Esse é o pressuposto das Escrituras.
- A Tensão Dialética na História:
Quando os gregos elencaram as Formas, atingíveis pela Razão, como Absoluto, deram origem às tensões perenes da filosofia. O dualismo grego desprezou a Matéria ao enfatizar a Forma (a Matéria seria o estágio mais baixo das irradiações da Pura Luz - o Concreto é o ponto mais distante do Núcleo de Sentido). Nessa etapa, a Tensão Dialética promoveu uma considerável aniquilação da Matéria.
O Catolicismo-Romano herdou esse elemento dualístico. Schaeffer atribui a Tomás de Aquino a maior responsabilidade pela alteração na Tensão Dialética, sendo ele o principal divulgador escolástico da filosofia aristotélica, que enfatiza mais os Particulares do que os Universais. Para Platão, em seu racionalismo, é impossível chegar aos Universais pelo esforço próprio da Razão numa coleta de informações entre os Particulares (o Mundo das Ideias precisa penetrar na mente do filósofo para dar-lhe esclarecimento). Em Aristóteles, contudo, a autonomia da Razão humana ganha destaque: o discípulo de Platão considera possível a ascensão aos Universais pela análise empírica dos Particulares. Tomás de Aquino, ao assimilar esse conceito, considerou a Queda como, num certo sentido, "parcial": o homem teve a sua racionalidade preservada, podendo elevar-se na compreensão do Criador por meio da análise da natureza.
Perceba: na Tensão Dialética grega, a Matéria foi consumida pela Forma. A Forma, "sobrevivente" na Tensão, elevou a sua própria Antítese: entendida na teologia cristã como Graça, a Forma absolutizou a Natureza, o Espiritual absolutizou o Material, iniciando um novo conflito dialético.
No pensamento escolástico, com a disseminação da ideia de que Deus escreveu Sua Palavra em dois livros, a Bíblia e a Natureza, a mensagem bíblica fez-se desinteressante para todos os aspectos da vida cotidiana e para os avanços da filosofia e das ciências, que contentaram-se em lidar meramente com os Particulares do Mundo Natural. Nessa Tensão Dialética, portanto, gradativamente a Natureza acabou consumindo a Graça, e anulando o acesso aos Universais como via de Sentido à existência Particular.
O Racionalismo, ao advogar a ideia da Razão Autônoma como veículo de análise da Natureza e vislumbre da Verdade, automaticamente elevou a sua Antítese, a Natureza, ao nível Absoluto. Ora, é impossível encontrar uma Síntese entre Razão Autônoma e Natureza Autônoma: ou a Natureza e seu Mecanismo concentra toda a realidade (naturalismo), ou a Razão humana é capaz de arbitrar sobre tudo.
Uma vez que a Natureza "aniquilou" a Graça, o mundo perdeu a Essência. A Natureza Autônoma, ao consumir a Razão Autônoma, mergulhando toda a existência no mundo fechado do naturalismo e do determinismo químico, transmutou-se em Prisão para o homem, instantaneamente desencadeando a Antítese "Liberdade". É aqui que se adentra no Motivo Humanista.
Uma análise cuidadosa dos pensamentos de Hobbes, Rousseau, Locke, Berkeley, Hegel, Nietzsche... evidencia o esforço Dialético Humanista de, na Tensão Liberdade x Natureza, destruir a Natureza, eliminar a Matéria aprisionante e absorver toda realidade na substância do Pensamento.
- As Ideologias e a Tensão Dialética:
David Koyzis, no Visões e Ilusões Políticas, interpreta a Ideologia nos termos da Idolatria pagã. Eric Voegelin o faz no escopo do gnosticismo e de uma revolta contra a Criação. Analisando o encadeamento lógico de nossa reflexão, essa associação está evidente: a Ideologia, por exemplo, racionalista, desloca a Razão de sua posição na "teia da realidade" para o posto de Absoluto, procurando, nem que seja pela destruição da Matéria, assentar toda a realidade às suas exigências. O liberalismo o faz com a ideia de Indivíduo. O empirismo, com o Método Científico. A existência é amputada para se encaixar na abstração reducionista. Voegelin está absolutamente certo quando declara que a Ideologia está a serviço de uma destruição da Criação.
Pensemos no Marxismo enquanto resultado da dialética hegeliana, fechada para os Universais e, por consequência lógica, materialista: ao elevar ao nível de Absoluto o Proletariado, imediatamente elevo, como Antítese Absoluta, a Burguesia, feita determinadora da realidade por via da manipulação linguística, vindo a ocupar o posto da Natureza no Motivo Humanista. Dois Absolutos opostos, como já dissemos, são incomunicáveis, de maneira que a resposta para a Tensão Dialética, segundo Marx, é a Revolução, a aniquilação do "mundo burguês". Uma vez, contudo, efetuado esse movimento revolucionário, cria-se uma nova Tensão Dialética: o grupo que encabeçou a Revolução posta-se no nível aristocrático, o "Povo" faz-se "Elite", demandando um novo ciclo aniquilatório. Lembro-me, aqui, dA Revolução dos Bichos, de George Orwell: quando a Revolução dos Bichos contra os homens é consumada, os porcos, líderes do movimento, logo se elevam ao lugar outrora ocupado pelos homens, dando cor à máxima: "Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros". Esse sistema binário, tipicamente pagão, portanto, é incapaz de encontrar uma Síntese Dialógica com o "Oposto Absoluto".
Como outro exemplo, podemos citar o Movimento Feminista, como um desmembramento do tipo de mentalidade iluminista que desencadeou o marxismo. Não importa tanto de que lado colocamos Tese e Antítese, mas importa saber que nesse binarismo se coloca, por exemplo, a Mulher Absoluta (Tese), considerada historicamente oprimida, e o Homem Absoluto (Antítese), encarado como um determinador histórico de toda a realidade. Gera-se, aqui, uma falsa dicotomia, uma cisão literalmente Absoluta entre Homem e Mulher. Nessa Tensão Dialética, uma reedição do Motivo Humanista - o Homem ocupa o lugar de "Natureza" (o Velho Totalizante que Aprisiona) -, demanda-se uma Fuga para a Liberdade pelo ato de rebeldia contra toda a limitação supostamente imposta pelo Homem por sobre o Corpo e a Vida da Mulher. A lógica Absolutizante invariavelmente colocará até a Maternidade como um produto vil da "Imposição Patriarcal". A solução para a Tensão Dialética, dentro da radicalidade desse movimento, seria, portanto, uma "Aniquilação do Homem". Mesmo que o movimento em questão não esteja consciente disso, essa é a única solução lógica para o sistema binário erigido. 

Perceba ainda o seguinte: numa Dialética de Relativos, há Síntese entre Homem e Mulher, uma vez que ambos partilham "Humanidade". A Absolutização de um dos dois, porém, necessariamente acarretá na desumanização - primeiro de um e depois do outro. Sem a Antítese, é impossível sustentar a Tese, e o desaparecimento do primeiro, anulará o segundo.
Parece-me suficiente, para finalizar o raciocínio, elencar apenas mais um outro exemplo da Dicotomia: o Igualitarismo. Aqui adentramos tanto em absoluta igualdade econômica, quanto na uniformização de gêneros - a busca pela "multiplicidade de formas" que acaba culminando na "deformidade" e, portanto, dando em indeterminação absoluta. Quando eu elevo a Abstração Igualitarista ao nível Absoluto, automaticamente absolutizo a ideia de Desigualdade. A Desigualdade, na Antítese, se coloca como fator único para se explicar todos os problemas da realidade, e a Igualdade Absoluta se faz a única alternativa possível para a Redenção do Mundo. Não pode haver Síntese. No jogo narcisista que torna inadmissível haver alguém ou alguma Lei acima de mim na hierarquia da Realidade, urge rebaixar toda a existência ao meu nível. Assim, qualquer alusão a determinado orgulho de classe ou pátria, é encarada como uma profanação do Sacro intento de uniformalização - e o Politicamente Correto trata de promover o policiamento necessário. Contudo, podemos esperar que essa Abstração absurda, totalmente deslocada da Realidade, da concretude do homem e do mundo, nunca se consumará por completo, pois a supremacia da Igualdade (somente obtida pela Força, nunca pela Síntese Dialética), invariavelmente produzirá uma nova Antítese. René Girard está plenamente correto ao afirmar que o Igualitarismo só faz intensificar violências sem precedentes. A ideia totalizante de Tolerância x Intolerância entra nesse Motivo Religioso: em nome da Tolerância, se justifica a Violenta Intolerância contra todos os Intolerantes.
- A Ideologia e a Morte do Homem:
Diria eu, vislumbrando a ideia de Pulsão de Morte, conforme teorizada por Freud, que isso tudo não passa de um movimento de fuga das contradições da realidade e da responsabilidade do ser humano enquanto ente racional, para a indiferenciação na matéria bruta e inerte, onde o fardo de Ser Humano inexiste, diluído no Todo e no Nada.
- O Motivo Bíblico:
Nesse ponto, é lúcido retornar ao Motivo Bíblico e sua natureza exclusiva, sem Dualismo e sem Tensão Dialética: reconhecendo que a Verdade de Deus, o Criador, reflete-se e mantém toda a Realidade Criada, posso me postar como parte do todo, da "teia do Cosmos", enquanto ente biológico, e vislumbrar o Sentido de minha Pessoalidade no Criador Pessoal. Se não encontro o Sentido de Ser Pessoa no Criador, acima da Natureza Impessoal, necessariamente procurarei minha Pessoalidade numa Tensão Dialética com aquilo que estiver abaixo dos meus pés: como único ser Pessoal, farme-ei Absoluto e entrarei em conflito com minha Antítese, a Impessoalidade, forçando uma Síntese Impossível que necessariamente acarretará na destruição, ou do Impessoal ou do Pessoal. Ao elevar o Ídolo Impessoal das entranhas da Natureza e postá-lo como fonte de Sentido, a tendência é que a minha própria Humanidade seja, aos poucos, consumida e rebaixada do nível do Ídolo, Impessoal. O ato de prescrutar o Impessoal pela via dialética, procurando a minha essência e elevação na substância com ele partilhada, necessariamente abolirá o qualificativo "Pessoa", que só existe em mim, e não no ente com quem Dialogo. Tão somente atestarei meu eu biológico.
Se há uma Pessoa Absoluta em Deus, de quem eu retiro a Essência de minha Pessoalidade, por outro lado, me situo no Mundo não como Pessoa Absoluta, promovendo a Tensão (Forma x Natureza / Liberdade x Natureza), mas como Parte - minha Identidade Última não precisa ser encontrada numa disputa dialética, mas na própria Origem Indisputada de todas as coisas. Assim, sou capaz de exercer de modo saudável a dualidade com o mundo, que também assenta-se, em última instância, no Criador.
Natanael Pedro Castoldi

Os Novos Ministros, a Oposição Histérica e a Barbarização da Sociedade

--- O texto que segue objetiva refletir sobre críticas desferidas contra o governo que sucede o Dilma, com ênfase no que se tem dito acerca da sua composição ministerial ---

"Civilização do Espetáculo" é como Llosa descreve nossas atuais circunstâncias enquanto sociedade, imersos na pós-cultura. Movidos pela mídia, nossa aptidão mental reduziu-se ao apelo da imagem, da exterioridade, fazendo do próprio corpo a expressão máxima das ideias políticas, que já não são propriamente ideias, mas tão somente um encadeamento de emoções e de identificação carnal.
O empobrecimento da visão do homem, cuja complexidade é suprimida pelo obscurantismo ideológico, obstrui a superação da imagem corpórea em favor da avaliação do homem interior, com seu mundo de raciocínios e intentos. A distorção da linguagem pela barbarização e segmentação da sociedade em tribos - ou coletivos -, torna o pronunciamento verbal irrelevante, talvez indecifrável, urgindo que se use a pele para demarcar discurso, expressar impulso e desejo, comunicar vontades, tal como em povos pré-históricos, ou "sem escrita". Isso fica claríssimo quando milhões aplaudem o pronunciamento ininteligível de uma liderança semianalfabeta, enquanto desprezam todo o conteúdo de um sucessor que realmente tem algo a dizer. Na decadência para o estágio kierkegaardiano da banalidade, só sobra o imaginário inconsciente ligado aos impulsos mais primitivos, com sua insuficiência moral e cognitiva para a assimilação de conceitos mais complexos e projetos de retorno não imediato.
Sem uma visão sóbria do ser humano, para além de sua expressão corpórea e da captação sensorial, sem a devida solidificação moral, resta apenas um moralismo inquisitorial: as palavras de ordem, os grunhidos a requisitar pela força o avanço das ideias cognoscíveis apenas ao grupo que as ostenta, reduzem qualquer divergente ao nível de escória, alguém a ser silenciado por qualquer via disponível, independentemente da sobriedade das justificativas de que disponha. Há, aqui, um imaturo e narcísico senso de onipotência que só a venda do fanatismo religioso é capaz de proporcionar.
Esse moralismo estético, centrado em totens e estandartes, aprisionado à imanência, é incapaz de perceber que homens sejam capazes de governar para mulheres, e vice-versa, que uma etnia/raça tenha em si a potência para beneficiar outra, que entes de uma classe social estejam aptos para atender membros das que estão acima ou abaixo. Essa estratificação total é produto da mentalidade barbárica e a fortalece: para eles, a constituição anatômica e territorial é qualificadora dos homens, que não podem partilhar de interesses comuns por conta da aparência, distinguindo-os em "diferentes humanidades", incomunicáveis e inconvivíveis, sobrando apenas a luta de classes/raças/sexos, na qual o único resultado possível e desejável é a dominação ditatorial de um grupo sobre o outro. O que resta é uivante animália e latejante ressentimento.
A perspectiva do gueto coletivista, por sua própria natureza, é incapaz de perceber a generalidade da sociedade e suas complexidades, tampouco observar, pela urgência e proporcionalidade, aquilo que interessa ao bem comum. Ter seu estandarte cravado no centro do poder é mais válido do que a resolução de uma dívida interna que está na casa das centenas de bilhões. E se você questionar a legitimidade dessa militância, a sua deposição enquanto ente civil apto a participar do processo democrático também se fará necessidade da maior magnitude.
Fogueiras nas rodovias, bodes expiatórios, turba urrando em êxtase diante do líder inflamado. A tendência é mergulharmos num tempo de trevas, não de libertação social.


Natanael Pedro Castoldi

O Sacrossanto Partido, o Mito e o Cínico


Cornelius Van Til acusa a existência de pressupostos a sustentar toda a nossa visão de mundo. Não é possível determinar nenhuma modalidade de pensamento sem que carreguemos pressuposições. O racionalista, por exemplo, deve pressupor que a Razão é competente para produzir conhecimento verdadeiro, já que é incapaz de, pela Razão, comprová-la como potente para tal encargo. Herman Dooyeweerd, por sua vez, nomeia as bases primeiras do pensamento como motivos religiosos - a cultura, portanto, enraíza-se primordialmente em interesses existenciais de qualidade sumamente transcendental. Ninguém escapa disso. Do contrário, não há possibilidade do próprio conhecimento. A negação dessa realidade, o oferecimento de uma resposta filosófica fechada e reducionista para toda a generalidade das coisas, é o que se pode definir por "ideologia".

Quando entendo que há certezas apodíticas, que advém de fontes diferentes da própria Razão, podendo residir nos genes, no legado cultural, na experiência vivida e assimilada, perceba, nutro uma perspectiva aberta e não dogmática da realidade. Ideologia é o oposto disso, e a oposição é de tal maneira extremada que nela não consta nem o reconhecimento de seus limites pressuposicionais. O ideólogo acredita, seguindo no racionalismo, que toda a forma de conhecimento é obtida pelo exercício arbitrário da racionalidade. E, veja a inversão: na sua oposição às "suposições fideístas", às crenças inexplicáveis tomadas de base para que o mais se torne cognoscível, na sua repulsa pela consideração da imensa complexidade da existência, numa vil arrogância intelectual, o militante desliga todas as luzes da sala e deixa bruxuleando apenas a pequena chama da vela de seu ego. A explicação para todo o recinto, agora inacessível pelo dogmatismo, está no diminuto alcance da tímida luz que fora poupada e que se faz desproporcionalmente luminosa em seu contrate com as trevas espectrais derredores. Algum aspecto da totalidade é amputado de todo o resto e posto isolado, entronizado, como resumo para a universalidade, totem detentor do código para o entendimento dos segredos do cosmos. Aqui, na luta "antirreligiosa", a ideologia se faz a mais ferrenha e absolutista das religiões.

Não é necessário retroceder muito no passado para constatarmos o desenrolar inquisitorial da ideologia concretizada e oficializada na figura de um Estado, como o nazista ou o soviético, filhos do Século das Luzes, que levantou sombras perenes sobre o mundo. Casos extremados ainda presentes podem ser vislumbrados em vizinhos latino-americanos, e em nosso meio pelos coletivos militantes e suas ensandecidamente moralistas patrulhas politicamente corretas. Agora fica mais fácil de entender as razões da ideologia dada como política de Estado facilmente acarretar em desequilíbrios humanitários, políticos e econômicos - isso está na sua inerente natureza limitante. Ocorre que os próprios confins da ideologia excluem mecanismos de autoanálise capazes de reconhecê-los, antes favorecendo, no espírito de fanatismo sectário, a busca por bodes expiatórios, por inimigos capazes de absorver todas as culpas dos fracassos imanentes na mesma lógica ideológica. É da natureza das religiões, na medida em que se elenca uma divindade, a busca por uma anti-divindade, um oposto, um diabo.

Se o Sacrossanto Partido, enquanto detentor da gnosis capaz de levar o mundo para a condição de plenitude, posiciona-se como entidade celestial, imaculada, as falhas precisam necessariamente ser direcionadas para um anti-Partido, um antiprogresso, um grupo de "opositores golpistas", cuja "vilania" justifica a insistência nos defectivos termos ideológicos - na verdade, os faz messianicamente necessários, sendo eles as correntes que prendem os titãs nas profundezas do Submundo. Esse discurso de terror pode ser vislumbrado na história das ditaduras já aludidas, como os nazistas e seus holocaustos, e os soviéticos e seus expurgos.

Logo, a ideologia já não é mais vista pela maioria dos seus apoiadores como um sistema lógico, explicável e reconhecível em suas articulações, mas adentra nos domínios da magia e do mito. A persistência num sistema de crenças idólatras que constantemente tropeça ao longo da caminhada, demonstrando a inadmissível falibilidade, tende a produzir pouco mais do que fé, distanciando, empalidecendo e imaterializando cada vez mais os ideais motivadores. Sobram máximas repetidas religiosamente, como mantras, cujo significado não é mais importante, havendo algo como que um poder mágico na própria recitação do feitiço, do encantamento. E verdadeiramente nada mais precisa ser explicado: a ideologia está dada como algo absolutamente certo e as falhas estão todas fora dela, em inimigos imaginários, espantalhos. Psicose, esquizofrenia. Nesse ponto, há interesses sofísticos em descrever minuciosamente as supostas culpas e incongruências dos oponentes, mas perpetuar o desdém para com a justificação das próprias qualidades. Vive-se pela negação, faz-se aceitável pelo rebaixamento do resto todo. E o mundo, já desintegrado e dilacerado pela via pagã, perde sua beleza.

Sobra, no final, apenas o pressuposto, e nada mais: supostamente há um conhecimento sob o domínio do Partido e dos líderes que o encarnam, códigos inacessíveis para o povo comum, cabendo deposição de fé cega e obediência aos pais sacerdotais. O pressuposto é de que eles farão a coisa certa, mesmo que não se saiba como e nem que coisa é essa. Há interesse nas finalidades, mas não se observa as potências e qualidades das medianidades. Cria-se aqui uma lógica tecnicista, na qual o andamento da sociedade é de inteira responsabilidade da nomenclatura para tal “qualificada”, ungida. Diante da obtusa complexidade e do mar de paradoxos e inexplicabilidades de um sistema de pensamento político quimérico, como o Juche norte-coreano, evita-se o questionamento popular, pois o que não se entende minimamente não é passível de interrogações dentro de seus próprios termos, que não são identificáveis. Nesse caso, repito para ser conclusivo, entrega-se aos esfíngicos aristocratas esclarecidos o redentor papel de decifrar os enigmas e traduzi-los na prática.

Na verdade, isso é parte integrante e irredutível do marxismo por sua própria raiz iluminista: a Razão humana é potente o suficiente para, reconhecendo a inteireza da realidade, formular um sistema de pensamento cuja aplicação é capaz de erigir uma sociedade plena, e, nesse caso, aqueles dados por ignorantes e inaptos para concluir o mesmo que os esclarecidos, precisam ser domados pelo Estado por via de contrato – “para o seu próprio bem”. Isso está em Rousseau, está no Projeto Iluminista como um todo. É difícil medir os efeitos populares de um discurso que manipula os impulsos religiosos mais elementares, objetivando a perfectibilidade para a qual o reles mortal é incapaz de se encaminhar sem a mediação do Partido como ministro da ideologia, e atribui a totalidade da culpa pelo insucesso a um demonizado segmento da sociedade – a turba prontamente se mobilizará para extirpar do mundo dos vivos o seu suposto algoz. A existência, ao reduzir-se ao ídolo, tende a simplificar a complexidade dos problemas a uma equação asininamente limitada – basta mover ou remover alguns elementos, como num ritualismo animista, que magicamente os problemas são resolvidos, o fluxo da Força Vital é desobstruído e o Progresso é continuado.

Aos fieis adeptos do Estado dogmático, da ideolatria, que não têm discernimento da lógica daquilo que pregam, de sua razão, de sua coerência e aplicabilidade, de seu funcionamento e articulação como meio para o fim determinado, sobra tão somente o mito. Por mito, refiro-me ao tipo de explicação pré-filosófica e pré-científica que comumente se dá para algum fenômeno da existência, tratando-se, portanto, de uma resposta desconectada da realidade concreta que tenta significar, de uma visão perdida da esfera da avaliação racional, mais afeita às emoções, desejos e símbolos do indivíduo pensante do que à natureza própria do objeto investigado. O mito comumente é posto como sustentáculo da religião, visando legitimá-la de alguma forma, situando seu panteão e sua cosmogonia no mundo circundante e objetivo. A ideologia, ao ver invalidadas suas premissas medianas para o cumprimento das finalidades, além do mecanismo compensatório do bode expiatório, passa a fundar-se num verdadeiro arcabouço mitológico, forjando eventos deslocados do tempo e do espaço, no qual seu império surtira profundos efeitos socioeconômicos por via da correta e alquímica manipulação dos elementos ideológicos pelas semidivindades, que ocupam os pináculos do poder.

Elencar esses mitos, esses contos demovidos da realidade mensurável e testemunhável, não é tão difícil. Nos últimos dias temos sido cercados de vãs repetições, de mantras ideológicos que aludem a um suposto passado dourado do Partido e de seus líderes, anos jazidos nas areias do tempo, nos quais a sabedoria gnóstica levou nossa nação aos últimos patamares do prestígio mundial. É da ordem sofística a adulteração dos fatos para que a realidade se adeque aos seus interesses – exercício que resulta nas mais cínicas e maquiavélicas mentiras. Não entrarei nos concretos e esmiuçáveis fatos de ordem econômica e política mundial que favoreceram a economia brasileira da década passada, reduzindo os supostos méritos do Partido, pretendendo tão somente avaliar a própria mente daqueles que trabalham religiosamente na preservação do mito. Basta criticar o governo que as respostas, como que reações involuntárias de uma mente emocionalmente e existencialmente absorvida, são dadas no impulso: “E o milagre econômico? E as dezenas de milhões de pobres que saíram da miséria?” Não importa se tua crítica envolveu, por exemplo, a extremada corrupção, que lateja nas veias infectas do poder, você ouvirá “refutações” viscerais sobre a “redução da pobreza”, ou a ainda pior sustentação da corrupção oficial pela “corrupção dos outros” – como se ilegalidades fossem moralmente compensadas por resultados sociais, como se a venalidade de um pudesse ser extinguida pelo apontamento da pestilência do outro, numa monolítica moralidade infantil.

O que quero pontuar aqui, num primeiro momento, é a raridade de ouvirmos respostas satisfatórias para as nossas proposições. Em verdade, é a própria ausência de justificativas que leva à associação falaciosa com questões que não partilham da natureza daquilo que criticamos, como apelar para o “milagre econômico” diante de uma acusação de corrupção. E se apresentarmos a solidez das evidências de que a vigente e severa crise econômica brasileira, em dissonância da tendência internacional, resulta de más opções ideológicas do Partido, dificilmente receberemos como replicação algo além das máximas dogmáticas e míticas, não nos sendo oferecida uma resposta sistematizada e bem alicerçada que invalide nossas observações e seja capaz de provar com rigidez o contrário. O que nos é dado são pressupostos para além dos quais seus perpetradores são incapazes de ir.

Disso é que parece-lhes legítimo afirmar que a crise local advém de uma suposta crise internacional, para a qual não há nenhuma fundamentação averiguável na realidade concreta. Delírios! Delírios que chegam ao ponto de culpar até mesmo a mídia como responsável pela invenção de uma depressão que não existe, mesmo que incalculáveis empresas estejam fechando as portas, muitos milhares estejam perdendo os empregos e os preços se encontrem em contínuo aumento. Nesse situação, a demonstração dos fatos se mostra infrutífera: lidamos com fé, com religião, com mitologia, nosso interlocutor não está preocupado com o mundo sensível, não partimos das mesmas lógicas de raciocínio.

Para facilitar a comprovação disso que venho sugerindo, sugiro que o leitor, antes de apresentar evidências que comprovem a falência do raciocínio do fiel partidário, levante questionamentos. Se, por exemplo, o interlocutor alegar que “o governo resgatou 40 milhões da pobreza”, apenas teste-o para ver se ele entende algo sobre aquilo que ele mesmo está falando com tanta segurança, entregue-lhe o ônus da prova, faça com que ele tente explicar, dentro de parâmetros aceitáveis, como se deu esse processo messiânico, a concretização do Reino dos Céus, como o processo se associou à economia, às políticas públicas e aos demais fatores contextuais relevantes. Faça-o fugir do mantra, tire-o da zona do conforto dogmático, da inquestionabilidade. Se tiver sorte, ele reconhecerá que dissemina algo cuja dinâmica desconhece e não consegue conectar com a realidade factual, e se tiver mais sorte ainda, o levará a descobrir que, se milhões saíram da miséria, o mérito não deve ser dado inteiramente ao governo do ex-presidente. Isso também vale para as alegações sobre o “Milagre Econômico”, a fórmula de que privatizar equivale a tirar dinheiro do povo, a ilusão de que a intervenção do Estado sobre a economia é absolutamente necessária e benéfica, e, vale acrescentar, a historieta de que o processo político pelo qual a presidente tem passado não é impeachment, mas “golpe”. Nessa hora não te cabe mostrar que sabe refutar, mas cobrar o conhecimento daquele com quem se realiza o embate. Se não houver resposta suficientemente comprobatória, o mito em seu pleno funcionamento terá sido desnudado.

Infelizmente, contudo, a grande maioria, dadas as motivações religiosas, não se submeterá às conclusões da inquirição. A preservação das esperanças de redenção por mediação do Partido e da etérea Revolução, pelo seu enraizamento nas emoções e fundações identitárias elementares do indivíduo, está acima da concretude mais explícita que se possa ostentar. Como recurso último de integração de si por meio da escatologia, sempre sobrará a mais severa e despropositada distorção dos fatos, com recorrências à mídia como manipuladora de toda a realidade – evidentemente, as informações veiculadas pelos órgãos oficiais do Partido são perfeitamente críveis. De todo o modo, quando reconhecido o mito e a ilogicidade, a continuidade da defesa pautada nos mesmos mantras só pode ser descrita em termos de cinismo. A questão aqui é que não há mais a ignorância daquele que evitou pensar sobre a torpeza das próprias ideias, mas a maldade intencionada como meio para se alcançar a finalidade última.

O cínico pode ser dado como o ente que, mesmo tendo em vista a incongruência de um ideário, segue utilizando-o dissimuladamente para fins particulares. Nisso, ele é assemelhado ao sofista que, mesmo desprezado o valor real e próprio da Razão, a usa arbitrariamente para benefício de si. Evidentemente, nesse estágio, a própria moral está liquefeita, uma vez que parte constitutiva e sustentadora da moral é a consciência de finalidade, o vislumbre escatológico: age-se hoje para benefício do objeto ou do outro com relação à sua causa final, seu telos. Uma vez que a Nova Jerusalém está totalmente contida nos projetos de poder do Partido, que a finalidade de toda a existência está nos limites da ideologia e que todas as coisas devem convergir para o fim dogmático delimitado nos cânones da nomenclatura, sendo a Revolução um meio legítimo, a relação do sectário com as outras pessoas, as coisas e a cultura se situará dentro desses marcos. Passa-se, então, a ser moralmente legítimo recorrer às distorções de toda a espécie se o ato tiver como intento a preservação do líder, a proteção do Sacrossanto e a continuação da “Luta”. Para fazer justiça, acrescento aqui os cigalheiros que sustém a solidez da areia esperando imediatos favores de poder, status e cifrões.

Eis um claríssimo exemplo de cinismo que presenciei há poucos dias: no calor das investigações da Operação Lava Jato, com indicações de que se estava chegando ao Caso Celso Daniel, militantes começaram a investir desqualificação do caráter da pessoa do juiz Sério Moro, tentando, com isso, inabilitá-lo para as investigações por vias de um moralismo totalmente condicionado aos fins predeterminados. Isso, por si só, já é sintoma suficientemente alarmante, se não fosse o conteúdo da própria acusação contra Moro: ele supostamente não teria deixado que gravassem uma palestra sua, o que foi entendido como ato hipócrita, já que ele mandou grampear e divulgar as ligações telefônicas de um civil que está sendo investigado pela Justiça. Uma reação óbvia aos progressos da Lava Jato. Esse é o nível que se espera da mentalidade cínica: plenamente ciente da indefensabilidade falaciosa, apelativa e desonesta de seu ato, sabidamente motivado para o obscurecimento de um processo que se aproxima de constatações aterradoras, o ofídio lança a peçonha. Assim, em escárnio, articula-se e distorce-se a moralidade com intuitos profundamente imorais, num fingimento da mais pífia substância.

Caro leitor, essa reflexão é, para além da revelação daquilo que tenho percebido sobre a configuração mental e moral de uma porção daqueles que têm insistido na defesa do presente governo, um alerta para a repetição da história. A essência antropológica mais primária do marxismo o faz igualmente errante e repetível em toda a sociedade no qual ganha proeminência, por mais que arestas sejam aparadas, que o vermelho seja pintado de rosa, quer nos coletivos de militância, quer nos partidos políticos. Não há nenhuma base sólida para que a moral se sustente dentro dessa perspectiva materialista, que limita o mundo para ilimitar o homem e, assim, incorrer sempre na messianização do executor do poder como ente que, na ilimitude, atingiu patamar gnóstico mais elevado e, portanto, está apto e é necessário para a elevação e igualitarização dos demais. Não há nenhuma barreira intelectual que suprima a consumação apaixonada dos desejos mais ardentes e profundos do fiel. Não há barreira nenhuma para que, no estágio final de deterioração dessa religião política, dessa mitologização de tudo pela abstração e deslocamento da realidade concreta, o cinismo se torne a regra. Nesse dia, pela busca utópica do paraíso edênico perdido, teremos acendido as fornalhas do próprio Inferno.


Natanael Pedro Castoldi

A Dissolução da Culpa, a Obstrução Moral e a Pizza de Mortadela


Tempos de crise moral, de terra desolada, de vastidão árida, são períodos de provação, períodos de juízo, de infusão de luz a atormentar os demônios que preferiam se resguardar nas trevas da Ordem e do Progresso. Ao contrário do que comumente se pensa, a imolação do caos, cujo sangue pútrido escorre pelo altar das vaidades, espalhando pelo chão e enrubescendo os pés dos fiéis que diante dele se postam, ainda que empesteie todas as coisas, não desordena a moral, mas a cristaliza ainda mais: não importa se o demônio se escora em moralismo, trajando uma máscara que bloqueia as luzes do Juízo Final, também não importa se uma parcela da população se esforce exaustivamente para aceitar a máscara como face legítima da figura semidivina que encarna os ideais de suas aspirações revolucionárias e “democráticas”, os espíritos se dividem, o escárnio explícito e cínico não deixa escolha, deve-se tomar partido. A consciência pesa diante das evidências e da verdadeira perturbação ao legítimo bom senso.

Nesse ponto, alguns fenômenos engraçados se fazem ver. No devaneio de preservar a própria imagem pela suposta neutralidade, isso em dolorosa tensão com as demandas morais próprias do ser, algumas pessoas, apelidadas pejorativa e legitimamente de “isentões”, justificam a continuidade de sua defesa do Mascarado e daquilo que ele representa pela desassociarão nominal, abraçando lugares-comuns e abstrações quase indecifráveis – falam as mesmas coisas que os partidários declarados, tanto naquilo que defendem quanto naquilo que criticam, mas se dizem genericamente e tão somente “de Esquerda”. Eles provavelmente investiram seu voto para a consolidação do sistema vigente, conscientes do tipo de moralidade sustentada pelo Partido já nas jogadas eleitorais, moralizando sua opção na insólita e imaginativa esperança de redenção pela “Revolução”, e seguem dando fundamentação para a permanência da mentalidade que se executa do centro do poder, sem, contudo, arcarem com a sua responsabilidade direta – não reconhecem culpa, cinicamente a transferem. Seguindo a opinião pública, pelo bem de sua imagem social, identificam o fracasso pontuado e solidificado no Partido, mas não são capazes de enxergar em si mesmos a torpeza de ideais, assim, apenas desvisceram o Partido, jogando a carcaça fora e permanecendo com todas as suas entranhas. Esse já é um espírito que a luz revelou e forçou à escolha.

Outro espírito revelado é o daqueles que, reconhecendo as incontáveis acusações que têm sido desferidas contra o sacrossanto Partido encarnado na pessoa do líder, postam-se na irredutível defesa da sua plena beatitude, em total e inquestionada submissão às pregações proféticas e sacerdotais dos aristocratas gnósticos. Não importa, nesse ponto, a razoabilidade e quantidade das acusações, não importa se forem maximamente concretas, suas motivações religiosas, resguardadas nas esperanças que o Partido alimenta, são suficientes para o fervor emocionalista cego, uma paixão que absorve suas consciências. Nesse ponto, perceba a incoerente seletividade, são capazes de ver culpabilidade e absoluta verdade no mais absurdo boato lançado contra o opositor, desde que isso favoreça a proteção do Pai e da Mãe, a quem se dispõem para além de qualquer limite. Desses, é claro, há os mercenários que recebem um empurrão traduzido em cifrões e status. Não é necessário discorrer muito sobre esses casos extremados de tão baixa latitude moral, da opção pela defesa do indefensável, moralizada por uma suposta luta em favor de abstrações que pouco se conectam com a natureza primeira daquilo que defendem, como a democracia, o Estado Democrático de Direito e o afastamento do “Uncle Sam”, dos “filhotes da Ditadura” e dos diabretes capitalistas. Não haveria espaço aqui para enumerar as falácias e desonestidades intelectuais embutidas, tal qual mortadela, nessa via.

O último tipo de espírito dos revelados na terra desolada que gostaria de acusar é, em verdade, o pior de todos, embora se perceba o mais sensato. Quando as paredes caem, expondo os corpos nus que habitam os recintos abolidos, exaurem-se as opções e deve-se tomar posição diante a nudez revelada e indubitável. Essa última espécie, contudo, é a única que parece gostar da oportunidade que a luz lhe oferece: exposto, agora ele aparece para os demais e, aparecendo, pode se postar de modo a ser admirado. Eis a classe, aproveitadora das ocasiões de extremada imoralidade, que busca contrastar com o todo como alguém belo e moral – ele se escora nas podridões para emergir como puro e saudável, ele se eleva do sangue que escorre do altar para que percebam que seu aroma é diferente, para que notem que ele não está maculado pelas correntes de corrupção. Outro espírito definitivamente revelado! E o que ele costuma bradar quando se levanta por sobre os demais? Obviamente ele afirma o óbvio: “há outros corruptos”. Deve ser parabenizado pela descoberta. Mas o problema real não está nesse primeiro pronunciamento, absolutamente desnecessário, mas na aplicação do raciocínio que, infelizmente, prossegue: “então só é justo julgar um político corrupto se todos os outros forem julgados”. Calorosos aplausos emanam dos mascarados que estão sob o altar. Suspiros de admiração são ouvidos dos enlameados que estão aos pés do palanque. Ele encontrou a solução para todos os problemas: basta que a generalidade dos corruptos seja julgada! Todos os corruptos deliram eufóricos!

Eis a razão de o tipo mais incrustado de moralismo – o mais sofista de todos – ser, também, o mais perigoso – como os moralistas costumam ser em qualquer esfera: sua postura, assimilada pelos outros espíritos de igual natureza, dissemina uma mentalidade que simplesmente obstrui a efetivação de sua própria proposição. No afã de direcionar o olhar de todos para todos os corruptos, faz faltarem olhos, perde-se o senso de proporções e a percepção de que há pontos de podridão capitais de onde as demais venalidades emanam – julgar o prefeito da cidade faz-se, dentro dessa lógica, tão dimensionalmente relevante quando vigiar os passos do presidente da República. O aparente e ingênuo interesse pelo fim imediato de toda a corrupção de todo o lugar é o próprio impedimento para que qualquer nível de corrupção de qualquer locação seja realmente interceptado e posto na balança da Lei. É o famoso “tudo ou nada”: se não for para julgar todos ao mesmo tempo, então não julgue ninguém. Pela generalização da culpa desproporcionada, a própria culpabilidade é diluída. Há um ar de visceral justiça aqui, uma aparente beleza moral, mas, em essência, se tem pouco além de má retórica. Estamos presos num pântano de cem saídas, pois, já que não podemos sair por todas elas ao mesmo tempo, somos obrigados a permanecer confinados nele.

Nos encaminhemos para um exemplo mais sólido, ilustrando bem esse tipo de espírito revelado em ação: sabemos que o principal processo que recai sobre a presidente, o de impeachment, é um tipo de movimento que só pode incluir ela e mais ninguém, pois é exclusivo para tramitações acerca da liderança do Executivo – aqui não há Lava Jato, pois centra-se nas conhecidas pedaladas fiscais por ela realizadas. Ainda assim, a mera sugestão de que o presidente será julgado leva o moralista a bradar: “E O AÉCIO?! E O CUNHA?” Que sejam julgados, de fato, mas o julgamento deles não têm absolutamente nada a ver com o da presidente. É legítimo e benéfico pressionar vereditos condenatórios, todavia, sinceramente, na maioria dos casos fica parecendo duas coisas, menos um senso de justiça legítimo: último recurso moralista de defesa da presidente e o já esmiuçado interesse em se posicionar publicamente numa condição de admirável lucidez moral. É muito fácil perceber as implicações desse tipo de narcisismo obstrutivo, das famosas falácias do nariz de palhaço e do espantalho: se não é legítimo dar cabo de um processo de âmbito presidencial sem incluir nele, ou julgar concomitantemente, personagens reconhecidamente opositoras, então, provavelmente, não haverá julgamento de ninguém – o que para esses eruditos parece ser uma saída adequada e totalmente em conformidade com a lógica de suas palavras, preferindo que ninguém seja julgado se só a presidente for. Por fim, alegrar-se-ão pela concretização de suas ideias na famosa "pizza", uma pizza sabor mortadela – que sejam postos em prática todos os devidos trâmites e todas as politicagens necessárias para que nem a presidente e nem ninguém seja colocado diretamente ao olhar petrificante de Medusa.

Um exemplo ainda mais dramático, veiculado recentemente por artistas, é o de que outros mandatos presidenciais também foram acusados de crimes e nada foi feito. Nesse caso, somos orientados a nos contentar com a presente situação, pois somos incapazes de voltar no tempo e condenar outros governos por suas vilanias. Qual a razão de tentarmos nos redimir dos erros passados hoje, aplicando a legítima justiça, se é possível guarnecer nosso comodismo e legitimar nossas questionáveis opções políticas nos erros de décadas passadas, com ênfase, sempre e para variar, na Ditadura Militar?

É possível, contudo, esforçar-se para uma posição um pouco mais coerente com a realidade dos fatos. Com a obviedade dos crimes e os resultados políticos, sociais e econômicos de um tipo de política que já não mais corresponde às demandas da nação, apesar de ser sobejamente  útil para a amamentação prolongada dos que aprenderam a barganhar com o Estado, é legítimo desejar que a presente configuração do governo se altere e que quem o está comandando, havendo amparo judicial, retire-se do cargo, mesmo que peixes menores não venham a perder os seus – o que seria uma pena. De todo modo, não há golpismo nisso. E se há legalidade nos processos, as intenções daqueles que o desenvolvem não os tornam golpes, pois o golpe é, e sempre será, uma infração das leis que sustentam a democracia – “golpe” é justamente aquilo que motivou a abertura dos processos. Também não há mal algum em não se deixar levar pela falácia da rampa escorregadia, que afirma que a saída do atual governo deixará a presente desolação ainda mais... desolada? Acrescento que não há imoralidade no favorecimento, em termos de proporção e necessidade, do processo presidencial por sobre os demais, e na sustentação de que o andamento do impeachment não deva estar condicionado ao andamento da Lava Jato, já que são situações diferentes. Que todos sejam julgados dentro de suas esferas e de seu tempo, começando, de preferência, com algum ponto, pois é impossível fazer qualquer coisa se tudo tiver que ser feito concomitantemente.

Ninguém desiste de comer um punhado de ameixas por não conseguir enfiá-las todas ao mesmo tempo na boca. Uma por vez. Se algumas sobrarem, é melhor do que sobrarem todas.

Estou tentando ser minimamente cético e sagaz - o mundo da política é hostil e demanda análises um pouco menos apaixonadas. Pode, disso, ficar parecendo que pretendo anular argumentos contra os opositores do governo, se é que eles existem – no fundo, os corruptos todos têm bebido das mesmas fontes, partilhado dos mesmos interesses e se articulado independentemente de partido -, mas minha intenção e as consequências de meu pensamento favorecem justamente o contrário disso. Quem defende os corruptos opositores é justamente aquele que, pela defesa da presidente afirma que ninguém pode ser julgado se todos não forem julgados simultaneamente – então, se a presidente não for, eles também não precisam ser. São esses espíritos os que favorecem a pizza de mortadela. Meu interesse pela manutenção da ordem dos processos e sua independência, sem estar preso a uma necessidade de me construir socialmente como alguém “belo e moral” por meio do contraste desonesto e irresponsável com os ofídicos crimes que se amontoam, reside na possibilitação de que todos sejam devidamente julgados, sem “jeitinhos” desviantes da Lei, sem o insensato uso da monolítica moralidade infantil de que “se o outro fez eu também posso” ou, “enquanto o outro não for xingado, é injusto me xingar”. Política é coisa de gente grande, de quem, sendo homem, e não “isentão”, pensa como homem e arca com as responsabilidades cívicas de suas ideias e de seus atos. Precisamos inocular a verdadeira Moral na ordem política de nosso país e, para tal, que o moralismo meninil, ingênuo e sofismático seja revelado em sua nudez carniçal, em sua obtusa feição esqueletal.


Natanael Pedro Castoldi

Recomendo como leitura complementar o seguinte artigo:
- "Nós Também Somos Corruptos!" E Daí?

A Imposição Burguesa, o Pão com Mortadela e a Voz do Pobre

Já parou para pensar que o marxismo, enquanto formulação teórica, não brotou do seio da comunidade "proletária", mas da própria mentalidade eminentemente capitalista e burguesa do intelectual? O ente iluminado pelas leituras de Hegel, pelo emocionalismo de Rousseau e pela extrapolação da mecânica da economia para toda a realidade senciente, subjetiva e social do homem, postou-se como o profeta e messias de uma classe da qual nunca pertenceu e como tal nunca viveu - ainda assim, julgou-se receptador, intérprete e porta-voz daquilo que parece ter definido como "urros indecifráveis" de pessoas incapazes de saber o que querem e como afirmá-lo social e politicamente.
A raiz iluminista da mente de Marx fica evidente aqui e a defesa da premissa marxista é a própria perpetuação do iluminismo do qual ela emanou, e segue na maioria dos assim chamados por Scruton de "Pensadores da Nova Esquerda". Para sugerir que sabemos mais sobre determinado grupo de pessoas, tradicionalmente dado como desprivilegiado, do que seus próprios membros, precisamos sustentar a pressuposição moderna de que o conhecimento, a Razão, é que faz o homem, que o torna consciente de si e civilizado. Evidentemente, informações e vigor mental facilitam a interpretação de si e do mundo, mas julgar que a condição socioeconômica leva a um desconhecimento das próprias e reais necessidades, é ter a abstração técnica e cientificista como balizadora da verdade. Há muito mais do que abstração racionalista na formação do ser - em Himmelfarb temos a perpetuação de tradições virtuosas pela dinâmica comunitária, em Kirk e Eliot temos a imaginação moral e o contrato da sociedade eterna, em Chesterton temos a democracia dos mortos, em Lewis, a Lei Natural, e em Szondi, o retorno do ancestral pelos genes, como outros veículos identitários e volitivos. A sugestão de que grupos menos "privilegiados" estão inteiramente condicionados, em desejo, ao discurso dominante, é arruinar a sua própria subjetividade e entronizar a racionalização externa como via de resgate de sua suposta ignorância imobilizante - e, assim, levá-los de uma narrativa burguesa para outra. Em momento algum se leva em conta o que os próprios "excluídos" têm a dizer.
Estando no lugar de gente como Theodore Dalrymple, médico que trabalhou em locações nas quais Marx teria dificuldade de passar uma pernoite, podemos começar a perceber que, pelo relato do próprio indivíduo e independentemente de sua condição, ele costuma saber exatamente quem é e o que quer. Digo-o tendo em mente um diálogo produtivo com um morador da Ilha das Flores, em Porto Alegre, para quem o projeto para os próximos meses era trocar as tábuas velhas da casa por uma estrutura de compensado. Ele não queria mais do que isso e pretendia fazê-lo com o ganho de seu próprio trabalho. Não ousei julgar a validade de seu raciocínio e de seu desejo pela sua condição. Deveria ele querer "subir mais alto"? Em verdade, meu interlocutor era mais pé no chão e sensato do que muitos acadêmicos que conheço.
Disso concluo que, me parece, muitos daqueles que damos por "desfavorecidos", se guarnecem num senso realista de identidade, no qual ostentam a defesa da própria honra e da virtude do trabalho para o alcance daquilo que sentem ser-lhes útil e agradável. Não vivem em outro mundo e costumam se desagradar de coisas que também nos desagradam: querem o fim da corrupção, estão descontentes com o preço das coisas do mercado e se sensibilizam com a mendicância. Ouso dizer que, comumente não sendo consumidores vorazes, discernem apoditicamente a essência da natureza humana melhor do que nós, suposta "elite".
Mesmo o recebimento de produtos advindos de políticas públicas do governo é-lhes interpretado de uma maneira bem diferente daquela que os ideólogos tentam-nos fazer engolir: a bolsa família, por exemplo, não lhes parece soar como baluarte de luta contra a "burguesia opressora", mas tão somente como um benefício que é revertido em causas concretas e úteis - não lhes interessa, perceba, o envolvimento nas abstrações revolucionárias. Os últimos protestos em favor do governo, com as inúmeras informações deles absorvidas, indo da distribuição de pão com mortadela, de camisetas sindicais, de algumas notas de dez reais, ao desconhecimento da parte de muitos sobre o que estavam fazendo naquele local - tendo tão somente respondido a um chamado impositivo -, são evidência clara de que a "Revolução" e a "luta de classes" parece mais um ímpeto utópico burguês do que uma emanação das vontades do "povo". O que está por trás disso, sugiro, é mais uma forma de, desprezando os interesses reais dos "desprivilegiados", mudar seu suserano - e o desespero para efetuá-lo é tal que evoca-se a escora do discurso de medo, de um caos resultante do avanço da "elite opositora", e de profecias redentoras, sobre um futuro admirável e desejável por todos, realizando, com isso, a manipulação dos impulsos religiosos e de vaidades e medos que pertencem à generalidade dos seres humanos. Quem não teme o cataclismo e a miséria? Quem não sonha com um futuro pleno? Historicamente, independentemente da classe, líderes se aproveitaram dessas nossas predisposições para a ampliação de seus próprios poderes.
Rejeito a tese marxista de que a história do homem é tão somente conflito de classes. A leitura de Gertrude Himmelfarb, Os Caminhos para a Modernidade, pode-te ser útil. Parece-me, na verdade, que a história do eterno conflito está mais para aqueles que estão no topo do poder econômico e político: eles lutam entre si e, para tal, fazem uso, inclusive, da turba inflamada, para que o marxismo serviu várias vezes, pondo a "plebe" na linha de frente de um conflito que resultaria no levante de czares e "caviares". Essa tem sido uma tendência reconhecível na Revolução Francesa e também no alastramento do nazismo. Em nosso tempo, no nosso país, sem rejeitar algumas das conquistas sociais obtidas, que em Dalrymple são esmiuçadas em suas consequências mais vis, tem-me parecido que há um interesse de capitalismo de Estado na perpetuação do discurso de Esquerda, uma vez que ele favorece a absolutização do próprio Estado - e o Estado, por sua vez, em meio às estatais e empresas aliadas, os monopólios. Há, indubitavelmente, relações econômicas e de poder da maior estatura se justificando e perpetuando no discurso de direitos e revolução social. Foi assim na União Soviética, é assim na Coreia do Norte, em Cuba e na Venezuela, e parece que assim tem sido entre nós. Não pode haver independência do povo quando se alimenta o paternalismo, o populismo, o apego religioso ao líder e ao Partido.
Mas veja, e veja bem: enquanto a "Revolução" e a defesa do Partido faz sentido para o ideólogo acadêmico desligado da realidade concreta, não soa como uma obviedade para aquele que tem tentado levar a vida na selva de concreto. Você não encontra com frequência líderes de massa que sejam eles próprios parte dela, você não costuma vislumbrar notas e manifestos que saiam do seio da comunidade - isso tende a brotar do gabinete de professores, intelectuais e políticos, respondendo ao que eles querem, em sua relação de poder com o Estado e seu círculo profissional, no qual os egos de todos são afagados. Isso tudo me soa, tome nota, produto do próprio delírio ideológico dos burgueses marxistas - que tentam se justificar e mover às custas de uma suposta causa social, sequestrando o povo para sua militância e deslocando-se em suas costas.
As pessoas querem dinheiro, saúde, dignidade, respeito, paz. Não querem a "Revolução" que promete fazê-las consumidoras tão vorazes quanto a "elite". Elas querem aquilo que os ideólogos prometem, pois todos o querem, mas a "Revolução" não lhes é um impulso próprio e óbvio. O "conflito de classes" não lhes é demanda - na verdade, só é patente para os iluminados delirantes e megalomaníacos. E aqui não cabe dizer que elas estão erradas ao não notarem aquilo que os "sábios gnósticos da Academia" afirmam ser verdade: elas sabem muito mais sobre si do que eles. Minha posição, nesse sentido, é, sim, pela libertação do povo - por uma libertação verdadeira, sólida, real, uma libertação mental para que deixem de ser "massa" impessoal respondendo ao "messias", uma libertação das amarras do Estado e de seu capitalismo próprio, uma libertação dos "intelectuais" que, na busca de seu próprio benefício político e econômico pelo favorecimento do status quo e às custas da boa vontade "povo", disseminam a ideologia do Partido. Essa libertação que favoreço está no reascender da autonomia sobre si, sem a submissão cega à gnosis do marxismo burguês e da lógica mercantil. Essa é uma libertação do jugo iluminista dos aristocratas esclarecidos. Essa é uma libertação do materialismo reducionista, da obrigatoriedade de se estar em conflito, da necessidade de se ver submetido à lógica de coletivo e ao pronunciamento do líder. Essa é uma libertação da presença física como moeda de troca, que tem migalhas do Estado e do Partido dadas como retorno para a sustentação do discurso que beneficia tão somente aqueles que parasitam Leviatã.
As próprias pessoas são capazes de dizer o que querem e gostaria de ouvi-las falando sem a cacofonia das mídias e dos revolucionários de gabinete. Gostaria de ouvi-las sem que a sua voz e seu discurso passasse pelo filtro da ideologia que não suguem. Gostaria de ouvi-las, apenas isso. Sentar e, reconhecendo-as como o que são, iguais, escutá-las sem me apressar numa acomodação dogmática e reducionista de seus dizeres. Que possam falar sem que o vermelho e o azul as desmembrem tentando arregimentá-las para seu bastião de poder assentado sobre as gorduras do Estado. Gostaria, nesse sentido, de uma pitada de anarquia, embora não seja anarquista.
A libertação que essas pessoas sonham não está, amigos, na aludida e inalcançável "Revolução", já que os próprios ideólogos estão rendidos ao poder do Mercado. Não acho justo que mais de nós sejam dados em vão sacrifício no altar do materialismo dialético de Marx. A libertação dessas pessoas começa com a sua libertação enquanto as pessoas que são. Libertação regada por um retorno à educação que lapida o ser em essência, não apenas como regurgitação social. Libertação inspirada pela diminuição do Estado, dos impostos, da burocracia, dos monopólios, e uma facilitação do negócio privado, uma ampliação da concorrência - e corrente redução de preços e aumento de qualidade -, que leve a um engrandecimento do homem em si, independente mental, econômica e socialmente, sem ter-se regido pela impessoalidade do Estado, do Partido e do Monopólio, mas produzindo, ao lado de outros em sua própria comunidade, aquilo que for do seu interesse, sua oferta e sua demanda.
Não quero postar-me como porta-voz desse grupo, cometendo o mesmo erro que condeno, mas posso partir de um ponto bastante sólido, que é o entendimento dos alegados "desprivilegiados" como pessoas, em essência, exatamente iguais a mim, de modo que posso me ver no rosto delas - não me julgo capaz de qualificá-las da maneira que gente como Rousseau faria, pondo o suposto desapego à Razão como algo aproximado da animália, da bestialidade, demandando que o "ignorante", dado por "humano de nível inferior", seja domado e condicionado às prerrogativas do contrato, do Estado, dos aristocratas esclarecidos. Longe disso, posso afirmar que buscam coisas semelhantes ao que eu busco, ao que o homem, por natureza, procura, e uma dela é a liberdade de se mover e de negociar em sua comunidade local. Que o capitalismo de consumo e de Estado diminua pela multiplicação de capitalistas, capazes de sustentarem-se material, psicológica e identitariamente na concretização do metafísico direito à propriedade, ecoando Weaver.
Não percebo igualdade inerente apenas no alcance comum de bens materiais - a igualdade começa com a noção de que não há variação de humanidade entre os seres humanos. Enquanto o indivíduo for impedido de pensar e agir dentro de sua própria consciência e soberania, ele até poderá ter acesso aos bens, mas não terá o domínio sobre eles, sendo a sua disposição sempre mediada pelo Partido, pelos "pais" dos escalões políticos - o domínio de propriedade e elemento pressupõe o domínio de si. Mas isso seria possível? Ou eu também estaria me apegando à ideologia, ao utópico? Não percebo assim, embora não pretenda aqui formular uma interpretação estanque da sociedade e oferecer uma solução - não quero cair na reducionista ideolatria. Não há perfeição esperada, somos incapazes de formular e assentar plenitude! Mas podemos erigir, a começar pela nossa própria relação social e com o Estado, uma crescente mentalidade de autonomia individual e comunitária. Se encaminharmos uma diminuição do Estado, fomentando uma responsabilização maior do indivíduo pelo seu meio e pela sua própria vida, se deixarmos de nos enveredar em braços de militâncias governamentais mafiosas, de sustentar, em nome da "Revolução", o próprio capitalismo de Estado, penso que estaremos nos encaminhando para dias um pouco melhores.
Para tal, tendo em vista o Jubileu judaico, não descarto a disponibilização de propriedades para a subsistência e o crescimento dos que não as possuem, com diminuição das propriedades excessivamente vastas e monopolistas, contanto que isso não seja efetuado e dirigido por gangsteres. Há outras muitas medidas que me parecem relevantes, mas evitaria elencá-las aqui por sua questionabilidade e polêmica inerentes. O que quero, contudo, é que se pense que é a mesma mentalidade antropológica que sustém tanto a via marxista quanto a do capitalismo de consumo, dada por Sowell como "irrestrita" - o ente é potencialmente ilimitado -, e ambas faces da moeda são vis para a solidificação do ser. Precisamos encontrar veredas defensáveis para que ambas se enfraqueçam, em favorecimento não apenas da economia, mas da própria subjetividade do ser e de sua comunidade local. Posso estar sendo razoavelmente ingênuo, mas quero que isso tudo sirva de estopim para maiores reflexões, que podem vir a ajudar a amadurecer e enriquecer as ideias aqui veiculadas.

Natanael Pedro Castoldi

"Nós Também Somos Corruptos!" E Daí?


Quanto maior a recorrência e a intensidade da vilania, mais frequentemente se escuta dos inteligentes, como fruto de sua ufanística sabedoria, a maior de todas as obviedades: "somos nós também corruptos". Congratulações! Como nascidos em nação de cultura cristã, ligada ao conceito de Pecado Original desde a sua fase embrionária, deve ser consideravelmente difícil atingir tais conclusões. Dada sua desnecessidade, há de se cogitar a existência de algum interesse incipiente, seja o de ostentação intelectual, almejando chamar a atenção para a própria lucidez e iluminação em meio a um cenário aparentemente tomado de acusadores hipócritas; veículo de autocomiseração pela denúncia pública de própria - e óbvia - falibilidade que, administrada por um coração piedoso, impede a avaliação e a acusação da corrupção alheia; ou, ainda, não podemos negar, a real demonstração de um zelo que se ocupa na certificação de que as pessoas não estejam tentando diminuir a gravidade de seus devidos erros apontando com veemência os dos outros. De todo modo, a boa intenção não é suficiente para privar o disseminador dessa ideia de suas consequências lógicas e práticas, das quais pode ser culpado pela ministração irresponsável da própria intelectualidade, que, não raro, permite ser tomada pelo impulso de um romantismo superficial - e, convenhamos, conveniente.

Como obra do Politicamente Correto, o discurso só pode ser descomprometedor. Enquanto angaria admiração dos corações suscetíveis, não implica necessariamente em um compromisso moral, político e filosófico da parte de seu divulgador. A generalizada corrupção, que supostamente o impede de olhar para os atos dos altos escalões do governo, não lhe dá sustentação para a transformação de sua própria realidade imediata: enquanto eu não for um verdadeiro beato, não posso perceber o próximo em seu deslize, e se não perceber primeiro o meu próximo, também não posso nem seque cogitar em tratar daquilo que acontece na sede do governo. O desligamento do debate público pela suposta atenção que se dá ao interminável percurso de auto-aperfeiçoamento, é moralmente compensado pela ilusão de se estar transformando, através da própria jornada existencial rumo à plenitude, a micro-sociedade do entorno. É como se a beleza, a inteireza e a bondade de si mesmo, a começar pela mística iluminação acerca da devida mazela, fossem instantaneamente absorvidas, como que por osmose, por toda a forma de vida derredor.

Três coisas, de imediato, se evidenciam aqui: a justificação moral para a própria propensão à passividade política, talvez em reação às complexidades quase que incognoscíveis dos jogos de poder, ou em consciente e obstinada negação da desconfortável e desconcertante realidade; a ornamentação e o embelezamento da imagem pública para que se evite a percepção da disposição covarde daquele que prefere não comprometer-se afetiva, social, intelectual e emocionalmente pelo embate necessário que o reconhecimento e a acusação pública do erro político demandam; e, por fim, a tentativa de redimir e travestir em virtude a própria egolatria. Nos aspectos aqui enumerados, em comum temos o afrouxamento moral, que garante a sua sobrevivência social pela aparência de moralismo - que é, no fundo, tão somente seu sinônimo.

Tanto o diagnóstico quanto a consequência dessa lógica de pensamento podem ser vislumbrados num mesmo entendimento: a perda do senso de proporção. É disso que brota e é nisso que culmina. A nutrição de uma noção de proporcionalidade demanda um encontro com a realidade, com aquilo que está além da esfera própria do indivíduo - sendo o vaidoso egoísmo uma das causas do discurso moralista, podemos ter em sua própria natureza individualista a causa primeira do deslocamento dualista da concretude e completude do que há fora da redondeza do ser, de sua zona de atuação e segurança, e, disso, a raiz da perda da noção das dimensões. O estreitamento da consciência, com um retorno infantil às considerações de existência apenas naquilo que se encaixa pontualmente no campo de visão do ente, com o carecimento experiencialista, facilmente acarreta numa redução e simplificação do mundo às definições e categorias linguísticas, migrando-se assim para uma lógica de raciocínio relativista ligada ao estruturalismo que, tendo em vista nosso ambiente intelectual tecido de colagens e importações, não me admira, muito tem de foucaultiano - e onde floresce Foucault, primeiro germinou Marx.

No reino das abstrações, no reino do dicionário, no reino das impressões emocionalistas, no reino isolacionista da arrogância intelectual, há letras, não qualidades, há signos, não dimensões, há definições, não rostos. Ali, não há árbitro além do próprio sentimento de quem lê, ancorado em sua experiência pessoal rasa, para qualificar, dimensionar, diferenciar as variadas corrupções, e a conceituação, o vislumbre imaginativo, só pode ver que não há dessemelhança entre o crime moral do presidente da República, acusado, suponha, de envolvimento em um intrincado esquema de corrupção que maneja bilhões de reais, e o do vizinho, que instalou clandestinamente um receptor de canais da televisão paga. Ora, se não possui coragem para encarar o vizinho, também se perceberá desobrigado a criticar o governo. E assim, o moralismo mata a moral: é só saindo de si mesmo, de seu universo de fantasias, opiniões e subjetivações, se vendo capaz de observar atentamente tanto a corrupção do governo, quanto a do vizinho, quanto a de si mesmo, que será capaz de qualificar a todas como atos de digressão moral e, ao mesmo tempo, ordená-las mediante a percepção de suas consequências. Está claro que corrupção é corrupção, em qualquer nível, e o cristão que o diga, contudo, há diferentes níveis de destruição na vilania praticada nas escalas de poder e relevância da sociedade - a liderança, pela centralização de forças a ela concedidas pelo próprio regime democrático e pela responsabilidade daí resultante, cabendo-lhe o seu bom uso para o direcionamento de todas as demais esferas, é, em termos práticos, mais poderosamente destrutiva em sua falta do que o vizinho que atravessa a rua fora da faixa de segurança.

Vista em nivelamento, no estrito ato pontual, a colocação de propina no bolso do político parece não ser mais relevante do que ultrapassar o limite de velocidade - e é na imobilidade moral desse discurso resultante que muitos se escondem, políticos ou não, para a desmoralização de seus acusadores e a perpetuação de suas ações de ilicitude. Sim, ambas as atitudes são transgressões, mas o primeiro, ainda que falho em seu juízo, geralmente age dentro de uma zona de segurança na qual não compromete ninguém e não trai as expectativas de um contrato por ele estabelecido com a sociedade, ao contrário do segundo, que se move desamparando juramentos e compromissos, destinando recursos alheios para seu próprio uso e daí comprometendo as áreas públicas para as quais esses valores deveriam ser originalmente destinados. Se perdermos a noção dimensional, o político se justifica pela corrupção do quitandeiro e o vendedor de cachorro-quente se justifica pela corrupção do político. De todo modo, não é a corrupção do malabarista do semáforo que inspira e envenena a consciência e a responsabilidade social do governante - aquele que está sendo visado no topo da pirâmide dos poderes é um corruptor da sociedade muito mais eficiente. Cabe acrescer aqui a sabedoria de Paulo Mercadante, para fins de lapidação do argumento: nem o político e nem o cidadão comum encontram-se em posição de inaptidão volitiva, a ponto de não poderem ser dados como responsáveis pelas suas corrupções* - cultura e histórico não direcionam a totalidade do ser, que age consciente de quem está traindo e das consequências de seu desdém egoísta.

Quero deixar claro que não estou, com isso, querendo limitar a concepção de corrupção aos aspectos quantitativos, aos números - a qualidade "corrupto" é aplicável a qualquer nível de infâmia. O que quero é escapar do reducionismo que, pela simples lógica da aplicabilidade generalizante da palavra, deixa de perceber a potência dos atos específicos, impossibilitando a avaliação e categorização do crime segundo a influência e os resultados sociais, aqui incluindo a estabilidade econômica, estrutural, política e moral, e a diferenciação de pena que obviamente deve ser dada entre aquele que desvia bilhões de reais e o ladrão de margarina. A menos que se reduza o homem à lógica construtivista, como produto, em sua integralidade, da cultura e da história e, por isso, uma regurgitação pontual e fatalista de uma torpe mentalidade atemporal e imaterial, a menos que se reduza a própria autonomia consciente do ser em sua humanidade, não há razões para fugir do julgamento moral e criminal dos atos específicos de corrupção. Aquele feito homicida determinado, dado no espaço e no tempo, não é desculpável simplesmente porque existe uma espécie de cultura de homicídios no país - e o fato de o ente fuzilar mentalmente seu parente chato não o torna moral e criminalmente passível do mesmo julgamento que aquele que realmente extirpou da existência o seu rival.

A verdade de que todos, como humanos, temos potencial para cometer qualquer crime já imaginado, pois todos os crimes foram postos em campo por pessoas como nós, não nos torna, na prática, flagiciosos do nível que Stálin, Hitler e Jack, O Estripador. Ainda que o fuzilamento mental possa vir a caracterizar aquele que o pensa como alguém munido de impulsos homicidas, uma espécie de assassino, ele deve ser acusado e abordado de uma maneira diferente daquela que careceria ser posta em exercício diante da figura de um sequestrador e seu refém. E, não, o ato restrito e pontual de fulminação mental, ou mesmo a relutância em devolver o excesso injusto de troco em dada compra, não cria uma rede de corrupções capaz de fundamentar a tomada do poder federal por grupos de criminosos organizados, que orquestram de modo cínico o alastramento de seus poderes e de sua máfia, da mesma maneira que a imagem de garotos brincando de polícia e ladrão com armas de plástico não facilita o aliciamento de jovens às gangues armadas e ao tráfico de drogas. A proibição desse tipo de divertimento, por sinal, parece-me mais um recurso para, visando as coisas mais banais, onerar a população comum daquela que é a responsabilidade governamental, despejando-lhe a culpa das injúrias que não lhe cabem. Estranhamente, as pessoas tendem a gostar de se ver incumbidas de algo muito maior do que elas (sejamos francos, absolutamente fora de seu controle), sentindo-se purificadas e sobremaneira úteis ao estarem salvando e moralizando a sociedade pelo heroico ato de destruir um brinquedo cuja existência as constitui, imediatamente, na raiz de toda a selvageria que assola o país - o que está dentro da própria lógica da desproporcionalidade aqui desmembrada.

De todo modo, há outros mecanismos e poderes por detrás do crime organizado, fomentando-o e nutrindo-o - ninguém deixa de recolher os dejetos que seu cão fez na calçada pretendendo, com isso, afirmar-se como o dono da avenida inteira, e ninguém deixa de devolver os R$ 0,25 a mais de troco pensando em depositá-lo num paraíso fiscal. O fato de o ato de não devolução do troco da parte de dez pessoas representar o valor de um pão com mortadela que poderia alimentar um faminto, não as torna individualmente culpadas pela fome do país inteiro, no máximo co-participantes - se é que uma coisa tem relação com a outra; a derrubada de uma única árvore também não te torna tão responsável pelo desmatamento quanto uma madeireira ilegal, apenas um corresponsável. Sem senso de proporção, não há possibilidade de qualquer julgamento e também não é possível sustentar qualquer padrão de moralidade, pois o padrão é, por definição, um dimensionador.

O cristão pode alegar que, por ocasião do Pecado Original e pela própria natureza do Pecado, ninguém é mais ou menos pecador, pois "todos pecaram", mas as próprias Escrituras, para além da definição teológica, estipulam juízos diversos para os atos de transgressão tendo por medida as suas consequências práticas pontuais: o corruptor do pequeno merece "ser lançado no mar com uma pedra de moinho no pescoço", a igreja de Corinto padecia de enfermidades por ocasião da gravidade de seus atos pecaminosos, mais vasto era o julgamento por sobre a Israel veterotestamentária quanto mais terrível fosse o comportamento do rei. Há de se distinguir, aqui, a questão da natureza pecadora, que é a base potencial da prática pecaminosa, e a do ato pecado, que é a realização concreta da intenção - ambas são condenáveis, mas a segunda me parece ser levada com mais seriedade do que a primeira pela perturbação que causa na vida coletiva. Questionando o trunfo do politicamente correto cristão, o "não julgueis" de Cristo, contesto afirmando que no contexto o Mestre não condena o apontamento da falha alheia, mas a desconsideração pela própria, e o juízo a que se refere não é a acusação de erro pautada numa boa intenção direcionada pelo padrão de dimensionamento moral estabelecido nas Escrituras, mas a imposição de um padrão de conduta calibrado pelas opiniões e torpezas vilmente intencionadas da parte do acusador, que vê a si mesmo como dimensionador da moral.

Num certo sentido, a arrogância travestida de piedade dos disseminadores desse discurso, que se dizem aliados do "não julgueis" de Cristo, é justamente o cumprimento cabal daquilo que Ele condena, uma vez que quem o pronuncia está partindo não de um padrão externo e comum capaz de dimensionar a moral, mas, por estar determinando por si mesmo que aqueles que têm julgado os políticos corruptos estão em imoralidade, se vislumbrado como base de dimensionamento. Julgam pelo "não julgue". Dessa perspectiva, tendo em vista a fundação sobre a qual desferem seu absoluto veredito sobre os outros, repare na abundância de contradições, que é uma base centrada em sua própria subjetividade emocionalista, relativizam a moralidade de tal maneira que desqualificam totalmente a sua própria afirmação e, no ímpeto de salvar o mundo da hipocrisia, acabam destruindo os fundamentos morais que possibilitam a própria qualificação de hipocrisia como algo negativo. Se está tudo nivelado, nada pode ser negativo e nada pode ser positivo, já que não existe oscilação. Se a moral for sequestrada pelo indivíduo e por ele qualificada e validada, não tarda e se tornará pouco além de opinião, gosto, interesse utilitário condicionado inteiramente à experiência.

A perda do senso de proporção, além de não conseguir diferenciar o crime do escravo esfomeado que rouba o pão de seu senhor da prática do suserano de chicotear esse mesmo escravo, se contradiz em suas próprias premissas: os mesmos que dizem que todos estão igualmente errados em todos os níveis da sociedade por terem sido vomitados por uma cultura ignóbil, concomitantemente justificam e condenam o crime - o escravo é legitimado em seu roubo do pão por sua subversão à vil condição, mas ao mesmo tempo é tão condenável quanto seu algoz. Vê-se aqui a paradoxal relação entre a relativização absoluta, que tem a moral como ilusória, e o moralismo exacerbado, que condena súbita e veementemente o alegado crime em sua mecânica, em seu ato, sem consideração pela intenção, pelo contexto e pela consequência. É excesso de contexto, a relativizar a moral, e ausência de contexto, a entronizar o moralismo, administrados por bruxas vis no mesmo caldeirão. Há, então, a percepção narcísica de que tudo o que eu faço, por menor que seja, tem impacto no mundo tal qual um golpe de Estado, ao lado de seu inverso, também narcisista, de que nada do que eu realmente venha a fazer surte algum efeito no mundo real. A completa incoerência dessa equação resulta, na prática, numa imobilização da moralidade, que deixa de servir para qualquer fim prático, concreto, socialmente saudável.

Se o que faço não influi na totalidade, sendo apenas mais um ato abjeto no lodaçal de vergonhas, tendência natural é migrar do moralismo à libertinagem. Se o que de mim flui pode ser tão cruel quanto as ações do ser mais maquiavélico e ofídico concebível, por qual razão não me faço seu imitador? A inaptidão humana para a reconfiguração de si em entidade congruente, quando não lidada de maneira sensata, seguramente acarretará num cinismo niilista que, hedonista, é dado ao moralismo como discurso sofismático para autopromoção e garantia de interesses diversos. 

Não me admira, das conclusões, que esse emocionalismo relativista possa, pela sua lógica interna, dar em entendimentos do nível das de Stálin, para quem, enquanto uma morte é uma tragédia, a morte de milhões não passa de uma estatística. Um claríssimo caso do que pode acontecer quando se perde o senso de proporcionalidade pela cegueira da religiosidade ideológica. No Brasil já colhemos frutos semelhantes, embora felizmente não lidem com cálculos tão tenebrosos: o roubo de R$ 0,25 de troco é uma tragédia qualitativamente idêntica ao roubo de bilhões. Pouco demorará para os entretenimentos privados do acusador passarem a ser postos em nivelamento às volumosas venalidades de seu acusado, ratificando-as pela demonização pessoal do primeiro. Não é necessário, aqui, multiplicar os exemplos, pois o leitor está consciente de outros muitos. O que nos cabe é apontar para a base de justificação que essa "amoralidade imoral-moralista" oferece para que rombos cada vez maiores sejam desferidos nos cofres públicos, diante dos quais permanecemos indiferentes, já que ainda não conseguimos resolver o nosso problema com velocidade acima do limite permitido. Enquanto você não varrer a casa cotidianamente, não culpe a equipe municipal da coleta seletiva de lixo por não recolher a sujidade da rua adequadamente.

Agora fica mais fácil entender a razão de todos os políticos, incluo aqui os corruptos, bradarem contra a prática da corrupção, chovendo no molhado. Todo mundo diz que reprova a corrupção. Mas falar ininterruptamente sobre ela é mantra que, aos olhos de muitos, realmente purifica a alma de seu articulador. O fato é que é vantajoso para toda a classe política o alimentar do discurso aqui esmiuçado, responsabilizando a generalidade da população pelos crimes de corrupção protagonizados por sua maliciosa casta de comparsas imorais, sedenta por poder e dinheiro, levando o povo comum a distrair-se em não jogar lixo no chão, pondo-os a vigiar uns aos outros, enquanto ganham salvo-conduto para a perpetuação de suas "práticas culturais". Não, jogar lixo na calçada não é razão para a formação de uma quadrilha. E a questão aqui não está em devaneios imaginativos sobre o que poderia fazer o ladrão de troco no caso de se tornar político, pois ele não é político e não está roubando como tal. Não se pode desqualificar o crime concreto com base em suposições e fantasias sobre a inata propensão humana à corrupção.

Encaminho a finalização dessa reflexão fazendo perceber que, no nivelamento, se todos são igualmente corruptos, então o oposto também é verdadeiro: todos são igualmente honestos. Se a lógica serve para positivar o negativo, então que negative o positivo. Não me prolongarei nisso: basta-me indicar que, nesse caso, sim, o ex-presidente é a alma mais honesta do Brasil, isso pelas razões de não termos nada além das auto-afirmações subjetivas e de imperar uma ausência de padrão que, pelo igualitarismo moral, leva à conclusão de que, perceba, ninguém pode ser mais honesto do que ele.

Leitor, reflita sobre isso com zelo. Não quero, em hipótese alguma, ter por aceitável o roubo do troco, o excesso de velocidade na rodovia, o lixo na rua e qualquer outra imoralidade, quero, justamente, preservar a possibilidade de que essas coisas continuem sendo consideradas imorais pela percepção de que existem atitudes mais imorais do que elas. A capacidade e a disposição de acusar o crime político resulta no - e do - exercício de enxergar a si mesmo e tende a facilitar a assimilação pessoal de ideias e comportamentos moralmente louváveis. Não se observa movimento quando tudo está parado, mas se pode dizer que tudo está parado porque se discerne a ideia de movimento. Não há imoralidade quando tudo e todos são sempre imorais, mas a consideração de algo é imoral pressupõe a moral e a moral pressupõe um padrão que, por sua vez, pressupõe dimensões. As imoralidades pequenas podem ser assim vislumbradas em comparação com as imoralidades maiores e estas, com as pequenas, e ambas, por fim, com aquilo que é moralmente aceitável - sem dimensionamento nesses termos, nenhuma moralidade é possível, e só nos sobrará rastejar num lamaçal determinista de indefinições que, pela pessimista onipresença da imperfeição, nos fará andar exaustivamente em círculos em torno das coisas mais elementares, desimportantes e superficiais, enquanto todas as estruturas da nação são corroídas por criminosos, que podem deliberadamente confiscar nossos bens em razão de sentarmos no assento preferencial do ônibus; cujo desvio bilionário, ainda que impeça a construção de hospitais e escolas, é tão ilegítimo - ou legítimo - quanto a fofoca da viúva da casa ao lado. Que grande ironia! Tornamo-nos cúmplices dos crimes destes, um com e como eles, em nosso afã de destacarmo-nos em superior moralidade!

*A Coerência das Incertezas, Paulo Mercadante, pg 28, É Realizações, 2001

Natanael Pedro Castoldi