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"Nós Também Somos Corruptos!" E Daí?


Quanto maior a recorrência e a intensidade da vilania, mais frequentemente se escuta dos inteligentes, como fruto de sua ufanística sabedoria, a maior de todas as obviedades: "somos nós também corruptos". Congratulações! Como nascidos em nação de cultura cristã, ligada ao conceito de Pecado Original desde a sua fase embrionária, deve ser consideravelmente difícil atingir tais conclusões. Dada sua desnecessidade, há de se cogitar a existência de algum interesse incipiente, seja o de ostentação intelectual, almejando chamar a atenção para a própria lucidez e iluminação em meio a um cenário aparentemente tomado de acusadores hipócritas; veículo de autocomiseração pela denúncia pública de própria - e óbvia - falibilidade que, administrada por um coração piedoso, impede a avaliação e a acusação da corrupção alheia; ou, ainda, não podemos negar, a real demonstração de um zelo que se ocupa na certificação de que as pessoas não estejam tentando diminuir a gravidade de seus devidos erros apontando com veemência os dos outros. De todo modo, a boa intenção não é suficiente para privar o disseminador dessa ideia de suas consequências lógicas e práticas, das quais pode ser culpado pela ministração irresponsável da própria intelectualidade, que, não raro, permite ser tomada pelo impulso de um romantismo superficial - e, convenhamos, conveniente.

Como obra do Politicamente Correto, o discurso só pode ser descomprometedor. Enquanto angaria admiração dos corações suscetíveis, não implica necessariamente em um compromisso moral, político e filosófico da parte de seu divulgador. A generalizada corrupção, que supostamente o impede de olhar para os atos dos altos escalões do governo, não lhe dá sustentação para a transformação de sua própria realidade imediata: enquanto eu não for um verdadeiro beato, não posso perceber o próximo em seu deslize, e se não perceber primeiro o meu próximo, também não posso nem seque cogitar em tratar daquilo que acontece na sede do governo. O desligamento do debate público pela suposta atenção que se dá ao interminável percurso de auto-aperfeiçoamento, é moralmente compensado pela ilusão de se estar transformando, através da própria jornada existencial rumo à plenitude, a micro-sociedade do entorno. É como se a beleza, a inteireza e a bondade de si mesmo, a começar pela mística iluminação acerca da devida mazela, fossem instantaneamente absorvidas, como que por osmose, por toda a forma de vida derredor.

Três coisas, de imediato, se evidenciam aqui: a justificação moral para a própria propensão à passividade política, talvez em reação às complexidades quase que incognoscíveis dos jogos de poder, ou em consciente e obstinada negação da desconfortável e desconcertante realidade; a ornamentação e o embelezamento da imagem pública para que se evite a percepção da disposição covarde daquele que prefere não comprometer-se afetiva, social, intelectual e emocionalmente pelo embate necessário que o reconhecimento e a acusação pública do erro político demandam; e, por fim, a tentativa de redimir e travestir em virtude a própria egolatria. Nos aspectos aqui enumerados, em comum temos o afrouxamento moral, que garante a sua sobrevivência social pela aparência de moralismo - que é, no fundo, tão somente seu sinônimo.

Tanto o diagnóstico quanto a consequência dessa lógica de pensamento podem ser vislumbrados num mesmo entendimento: a perda do senso de proporção. É disso que brota e é nisso que culmina. A nutrição de uma noção de proporcionalidade demanda um encontro com a realidade, com aquilo que está além da esfera própria do indivíduo - sendo o vaidoso egoísmo uma das causas do discurso moralista, podemos ter em sua própria natureza individualista a causa primeira do deslocamento dualista da concretude e completude do que há fora da redondeza do ser, de sua zona de atuação e segurança, e, disso, a raiz da perda da noção das dimensões. O estreitamento da consciência, com um retorno infantil às considerações de existência apenas naquilo que se encaixa pontualmente no campo de visão do ente, com o carecimento experiencialista, facilmente acarreta numa redução e simplificação do mundo às definições e categorias linguísticas, migrando-se assim para uma lógica de raciocínio relativista ligada ao estruturalismo que, tendo em vista nosso ambiente intelectual tecido de colagens e importações, não me admira, muito tem de foucaultiano - e onde floresce Foucault, primeiro germinou Marx.

No reino das abstrações, no reino do dicionário, no reino das impressões emocionalistas, no reino isolacionista da arrogância intelectual, há letras, não qualidades, há signos, não dimensões, há definições, não rostos. Ali, não há árbitro além do próprio sentimento de quem lê, ancorado em sua experiência pessoal rasa, para qualificar, dimensionar, diferenciar as variadas corrupções, e a conceituação, o vislumbre imaginativo, só pode ver que não há dessemelhança entre o crime moral do presidente da República, acusado, suponha, de envolvimento em um intrincado esquema de corrupção que maneja bilhões de reais, e o do vizinho, que instalou clandestinamente um receptor de canais da televisão paga. Ora, se não possui coragem para encarar o vizinho, também se perceberá desobrigado a criticar o governo. E assim, o moralismo mata a moral: é só saindo de si mesmo, de seu universo de fantasias, opiniões e subjetivações, se vendo capaz de observar atentamente tanto a corrupção do governo, quanto a do vizinho, quanto a de si mesmo, que será capaz de qualificar a todas como atos de digressão moral e, ao mesmo tempo, ordená-las mediante a percepção de suas consequências. Está claro que corrupção é corrupção, em qualquer nível, e o cristão que o diga, contudo, há diferentes níveis de destruição na vilania praticada nas escalas de poder e relevância da sociedade - a liderança, pela centralização de forças a ela concedidas pelo próprio regime democrático e pela responsabilidade daí resultante, cabendo-lhe o seu bom uso para o direcionamento de todas as demais esferas, é, em termos práticos, mais poderosamente destrutiva em sua falta do que o vizinho que atravessa a rua fora da faixa de segurança.

Vista em nivelamento, no estrito ato pontual, a colocação de propina no bolso do político parece não ser mais relevante do que ultrapassar o limite de velocidade - e é na imobilidade moral desse discurso resultante que muitos se escondem, políticos ou não, para a desmoralização de seus acusadores e a perpetuação de suas ações de ilicitude. Sim, ambas as atitudes são transgressões, mas o primeiro, ainda que falho em seu juízo, geralmente age dentro de uma zona de segurança na qual não compromete ninguém e não trai as expectativas de um contrato por ele estabelecido com a sociedade, ao contrário do segundo, que se move desamparando juramentos e compromissos, destinando recursos alheios para seu próprio uso e daí comprometendo as áreas públicas para as quais esses valores deveriam ser originalmente destinados. Se perdermos a noção dimensional, o político se justifica pela corrupção do quitandeiro e o vendedor de cachorro-quente se justifica pela corrupção do político. De todo modo, não é a corrupção do malabarista do semáforo que inspira e envenena a consciência e a responsabilidade social do governante - aquele que está sendo visado no topo da pirâmide dos poderes é um corruptor da sociedade muito mais eficiente. Cabe acrescer aqui a sabedoria de Paulo Mercadante, para fins de lapidação do argumento: nem o político e nem o cidadão comum encontram-se em posição de inaptidão volitiva, a ponto de não poderem ser dados como responsáveis pelas suas corrupções* - cultura e histórico não direcionam a totalidade do ser, que age consciente de quem está traindo e das consequências de seu desdém egoísta.

Quero deixar claro que não estou, com isso, querendo limitar a concepção de corrupção aos aspectos quantitativos, aos números - a qualidade "corrupto" é aplicável a qualquer nível de infâmia. O que quero é escapar do reducionismo que, pela simples lógica da aplicabilidade generalizante da palavra, deixa de perceber a potência dos atos específicos, impossibilitando a avaliação e categorização do crime segundo a influência e os resultados sociais, aqui incluindo a estabilidade econômica, estrutural, política e moral, e a diferenciação de pena que obviamente deve ser dada entre aquele que desvia bilhões de reais e o ladrão de margarina. A menos que se reduza o homem à lógica construtivista, como produto, em sua integralidade, da cultura e da história e, por isso, uma regurgitação pontual e fatalista de uma torpe mentalidade atemporal e imaterial, a menos que se reduza a própria autonomia consciente do ser em sua humanidade, não há razões para fugir do julgamento moral e criminal dos atos específicos de corrupção. Aquele feito homicida determinado, dado no espaço e no tempo, não é desculpável simplesmente porque existe uma espécie de cultura de homicídios no país - e o fato de o ente fuzilar mentalmente seu parente chato não o torna moral e criminalmente passível do mesmo julgamento que aquele que realmente extirpou da existência o seu rival.

A verdade de que todos, como humanos, temos potencial para cometer qualquer crime já imaginado, pois todos os crimes foram postos em campo por pessoas como nós, não nos torna, na prática, flagiciosos do nível que Stálin, Hitler e Jack, O Estripador. Ainda que o fuzilamento mental possa vir a caracterizar aquele que o pensa como alguém munido de impulsos homicidas, uma espécie de assassino, ele deve ser acusado e abordado de uma maneira diferente daquela que careceria ser posta em exercício diante da figura de um sequestrador e seu refém. E, não, o ato restrito e pontual de fulminação mental, ou mesmo a relutância em devolver o excesso injusto de troco em dada compra, não cria uma rede de corrupções capaz de fundamentar a tomada do poder federal por grupos de criminosos organizados, que orquestram de modo cínico o alastramento de seus poderes e de sua máfia, da mesma maneira que a imagem de garotos brincando de polícia e ladrão com armas de plástico não facilita o aliciamento de jovens às gangues armadas e ao tráfico de drogas. A proibição desse tipo de divertimento, por sinal, parece-me mais um recurso para, visando as coisas mais banais, onerar a população comum daquela que é a responsabilidade governamental, despejando-lhe a culpa das injúrias que não lhe cabem. Estranhamente, as pessoas tendem a gostar de se ver incumbidas de algo muito maior do que elas (sejamos francos, absolutamente fora de seu controle), sentindo-se purificadas e sobremaneira úteis ao estarem salvando e moralizando a sociedade pelo heroico ato de destruir um brinquedo cuja existência as constitui, imediatamente, na raiz de toda a selvageria que assola o país - o que está dentro da própria lógica da desproporcionalidade aqui desmembrada.

De todo modo, há outros mecanismos e poderes por detrás do crime organizado, fomentando-o e nutrindo-o - ninguém deixa de recolher os dejetos que seu cão fez na calçada pretendendo, com isso, afirmar-se como o dono da avenida inteira, e ninguém deixa de devolver os R$ 0,25 a mais de troco pensando em depositá-lo num paraíso fiscal. O fato de o ato de não devolução do troco da parte de dez pessoas representar o valor de um pão com mortadela que poderia alimentar um faminto, não as torna individualmente culpadas pela fome do país inteiro, no máximo co-participantes - se é que uma coisa tem relação com a outra; a derrubada de uma única árvore também não te torna tão responsável pelo desmatamento quanto uma madeireira ilegal, apenas um corresponsável. Sem senso de proporção, não há possibilidade de qualquer julgamento e também não é possível sustentar qualquer padrão de moralidade, pois o padrão é, por definição, um dimensionador.

O cristão pode alegar que, por ocasião do Pecado Original e pela própria natureza do Pecado, ninguém é mais ou menos pecador, pois "todos pecaram", mas as próprias Escrituras, para além da definição teológica, estipulam juízos diversos para os atos de transgressão tendo por medida as suas consequências práticas pontuais: o corruptor do pequeno merece "ser lançado no mar com uma pedra de moinho no pescoço", a igreja de Corinto padecia de enfermidades por ocasião da gravidade de seus atos pecaminosos, mais vasto era o julgamento por sobre a Israel veterotestamentária quanto mais terrível fosse o comportamento do rei. Há de se distinguir, aqui, a questão da natureza pecadora, que é a base potencial da prática pecaminosa, e a do ato pecado, que é a realização concreta da intenção - ambas são condenáveis, mas a segunda me parece ser levada com mais seriedade do que a primeira pela perturbação que causa na vida coletiva. Questionando o trunfo do politicamente correto cristão, o "não julgueis" de Cristo, contesto afirmando que no contexto o Mestre não condena o apontamento da falha alheia, mas a desconsideração pela própria, e o juízo a que se refere não é a acusação de erro pautada numa boa intenção direcionada pelo padrão de dimensionamento moral estabelecido nas Escrituras, mas a imposição de um padrão de conduta calibrado pelas opiniões e torpezas vilmente intencionadas da parte do acusador, que vê a si mesmo como dimensionador da moral.

Num certo sentido, a arrogância travestida de piedade dos disseminadores desse discurso, que se dizem aliados do "não julgueis" de Cristo, é justamente o cumprimento cabal daquilo que Ele condena, uma vez que quem o pronuncia está partindo não de um padrão externo e comum capaz de dimensionar a moral, mas, por estar determinando por si mesmo que aqueles que têm julgado os políticos corruptos estão em imoralidade, se vislumbrado como base de dimensionamento. Julgam pelo "não julgue". Dessa perspectiva, tendo em vista a fundação sobre a qual desferem seu absoluto veredito sobre os outros, repare na abundância de contradições, que é uma base centrada em sua própria subjetividade emocionalista, relativizam a moralidade de tal maneira que desqualificam totalmente a sua própria afirmação e, no ímpeto de salvar o mundo da hipocrisia, acabam destruindo os fundamentos morais que possibilitam a própria qualificação de hipocrisia como algo negativo. Se está tudo nivelado, nada pode ser negativo e nada pode ser positivo, já que não existe oscilação. Se a moral for sequestrada pelo indivíduo e por ele qualificada e validada, não tarda e se tornará pouco além de opinião, gosto, interesse utilitário condicionado inteiramente à experiência.

A perda do senso de proporção, além de não conseguir diferenciar o crime do escravo esfomeado que rouba o pão de seu senhor da prática do suserano de chicotear esse mesmo escravo, se contradiz em suas próprias premissas: os mesmos que dizem que todos estão igualmente errados em todos os níveis da sociedade por terem sido vomitados por uma cultura ignóbil, concomitantemente justificam e condenam o crime - o escravo é legitimado em seu roubo do pão por sua subversão à vil condição, mas ao mesmo tempo é tão condenável quanto seu algoz. Vê-se aqui a paradoxal relação entre a relativização absoluta, que tem a moral como ilusória, e o moralismo exacerbado, que condena súbita e veementemente o alegado crime em sua mecânica, em seu ato, sem consideração pela intenção, pelo contexto e pela consequência. É excesso de contexto, a relativizar a moral, e ausência de contexto, a entronizar o moralismo, administrados por bruxas vis no mesmo caldeirão. Há, então, a percepção narcísica de que tudo o que eu faço, por menor que seja, tem impacto no mundo tal qual um golpe de Estado, ao lado de seu inverso, também narcisista, de que nada do que eu realmente venha a fazer surte algum efeito no mundo real. A completa incoerência dessa equação resulta, na prática, numa imobilização da moralidade, que deixa de servir para qualquer fim prático, concreto, socialmente saudável.

Se o que faço não influi na totalidade, sendo apenas mais um ato abjeto no lodaçal de vergonhas, tendência natural é migrar do moralismo à libertinagem. Se o que de mim flui pode ser tão cruel quanto as ações do ser mais maquiavélico e ofídico concebível, por qual razão não me faço seu imitador? A inaptidão humana para a reconfiguração de si em entidade congruente, quando não lidada de maneira sensata, seguramente acarretará num cinismo niilista que, hedonista, é dado ao moralismo como discurso sofismático para autopromoção e garantia de interesses diversos. 

Não me admira, das conclusões, que esse emocionalismo relativista possa, pela sua lógica interna, dar em entendimentos do nível das de Stálin, para quem, enquanto uma morte é uma tragédia, a morte de milhões não passa de uma estatística. Um claríssimo caso do que pode acontecer quando se perde o senso de proporcionalidade pela cegueira da religiosidade ideológica. No Brasil já colhemos frutos semelhantes, embora felizmente não lidem com cálculos tão tenebrosos: o roubo de R$ 0,25 de troco é uma tragédia qualitativamente idêntica ao roubo de bilhões. Pouco demorará para os entretenimentos privados do acusador passarem a ser postos em nivelamento às volumosas venalidades de seu acusado, ratificando-as pela demonização pessoal do primeiro. Não é necessário, aqui, multiplicar os exemplos, pois o leitor está consciente de outros muitos. O que nos cabe é apontar para a base de justificação que essa "amoralidade imoral-moralista" oferece para que rombos cada vez maiores sejam desferidos nos cofres públicos, diante dos quais permanecemos indiferentes, já que ainda não conseguimos resolver o nosso problema com velocidade acima do limite permitido. Enquanto você não varrer a casa cotidianamente, não culpe a equipe municipal da coleta seletiva de lixo por não recolher a sujidade da rua adequadamente.

Agora fica mais fácil entender a razão de todos os políticos, incluo aqui os corruptos, bradarem contra a prática da corrupção, chovendo no molhado. Todo mundo diz que reprova a corrupção. Mas falar ininterruptamente sobre ela é mantra que, aos olhos de muitos, realmente purifica a alma de seu articulador. O fato é que é vantajoso para toda a classe política o alimentar do discurso aqui esmiuçado, responsabilizando a generalidade da população pelos crimes de corrupção protagonizados por sua maliciosa casta de comparsas imorais, sedenta por poder e dinheiro, levando o povo comum a distrair-se em não jogar lixo no chão, pondo-os a vigiar uns aos outros, enquanto ganham salvo-conduto para a perpetuação de suas "práticas culturais". Não, jogar lixo na calçada não é razão para a formação de uma quadrilha. E a questão aqui não está em devaneios imaginativos sobre o que poderia fazer o ladrão de troco no caso de se tornar político, pois ele não é político e não está roubando como tal. Não se pode desqualificar o crime concreto com base em suposições e fantasias sobre a inata propensão humana à corrupção.

Encaminho a finalização dessa reflexão fazendo perceber que, no nivelamento, se todos são igualmente corruptos, então o oposto também é verdadeiro: todos são igualmente honestos. Se a lógica serve para positivar o negativo, então que negative o positivo. Não me prolongarei nisso: basta-me indicar que, nesse caso, sim, o ex-presidente é a alma mais honesta do Brasil, isso pelas razões de não termos nada além das auto-afirmações subjetivas e de imperar uma ausência de padrão que, pelo igualitarismo moral, leva à conclusão de que, perceba, ninguém pode ser mais honesto do que ele.

Leitor, reflita sobre isso com zelo. Não quero, em hipótese alguma, ter por aceitável o roubo do troco, o excesso de velocidade na rodovia, o lixo na rua e qualquer outra imoralidade, quero, justamente, preservar a possibilidade de que essas coisas continuem sendo consideradas imorais pela percepção de que existem atitudes mais imorais do que elas. A capacidade e a disposição de acusar o crime político resulta no - e do - exercício de enxergar a si mesmo e tende a facilitar a assimilação pessoal de ideias e comportamentos moralmente louváveis. Não se observa movimento quando tudo está parado, mas se pode dizer que tudo está parado porque se discerne a ideia de movimento. Não há imoralidade quando tudo e todos são sempre imorais, mas a consideração de algo é imoral pressupõe a moral e a moral pressupõe um padrão que, por sua vez, pressupõe dimensões. As imoralidades pequenas podem ser assim vislumbradas em comparação com as imoralidades maiores e estas, com as pequenas, e ambas, por fim, com aquilo que é moralmente aceitável - sem dimensionamento nesses termos, nenhuma moralidade é possível, e só nos sobrará rastejar num lamaçal determinista de indefinições que, pela pessimista onipresença da imperfeição, nos fará andar exaustivamente em círculos em torno das coisas mais elementares, desimportantes e superficiais, enquanto todas as estruturas da nação são corroídas por criminosos, que podem deliberadamente confiscar nossos bens em razão de sentarmos no assento preferencial do ônibus; cujo desvio bilionário, ainda que impeça a construção de hospitais e escolas, é tão ilegítimo - ou legítimo - quanto a fofoca da viúva da casa ao lado. Que grande ironia! Tornamo-nos cúmplices dos crimes destes, um com e como eles, em nosso afã de destacarmo-nos em superior moralidade!

*A Coerência das Incertezas, Paulo Mercadante, pg 28, É Realizações, 2001

Natanael Pedro Castoldi

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