Ilustração da capa da S.E. Post Magazine, outubro, 1946
Já
disse o editor d'A Coerência das Incertezas*, página 36 da edição de 2001:
"A sacralização do Estado, com a absorção da 'ética' na 'política',
implica necessariamente a supressão da ética como dimensão autônoma." Essa
frase nunca me fez tanto sentido, tendo em vista os recentes acontecimentos
relacionados ao vazamento das conversas entre a presidente e seu mentor, que
levou o Partido e suas militâncias a desqualificar as imoralidades ali
professadas com base na suposta ilegalidade da divulgação. A obscenidade das
palavras, as intenções explicitadas e os ataques debochados contra pessoas e
instituições, nada disso ecoou na mente dos devotos da religião do Estado: não
há possibilidade de julgamento moral válido se o mesmo não for respaldado pela
legislação - eis um caso alarmante de estreitamento da consciência, desprovida
de autonomia.
Evidentemente,
uma vez concebida a natureza da Revolução, essa é uma articulação artificiosa.
De todo o modo, tal tem sido a prática comum no Brasil para a moralização de
todos os devaneios ideológico-políticos de suas lideranças partidárias: a
brecha na Lei, seu afrouxamento interpretativo, alteração ou acréscimo, dentro
dos limites do "Estado Democrático de Direito", purifica qualquer
intenção. Essa cegueira moral fica ainda mais evidente na compensação do
conteúdo torpe das gravações pela sugestão de crime proferida da vítima contra
seu divulgador, adentrando a lógica infantil de que o erro do outro suprime o
meu próprio - posso me justificar e tornar moralmente satisfatório se enfatizar
suficientemente o tropeço de meu opositor. Não estou alegando, contudo, que as
mentes que engendram tais artifícios o façam na ingênua maldade juvenil, em
verdade creio que o fazem sabendo que surtirá efeito na cabeça de seus
receptadores, cuja consciência já está liquefeita pelas intrusões constantes da
cultura paternalista na qual estão imersos.
Não
é necessário se esforçar para vislumbrar as consequências lógicas que esse tipo
de mentalidade pode produzir numa sociedade com seu alastrar e sua
intensificação. Não há limites para as ações do Estado quando a Justiça migra
da soberania da Moral para a arbitrariedade de um governo. Tendo em mente as
raízes ideológicas que sustentam os presentes discursos e comportamentos
militantes dos sectários do Partido, em essência o materialismo dialético de
Marx, a mesma base filosófico-política de estados como o Soviético do Século
XX, com seus expurgos e gulags, podemos perceber que o fruto realmente não pode
cair muito longe da árvore.
Acrescento
elementos à tese da fragilidade moral do grupo analisado apontando a sua
corrente forja de espantalhos e bodes expiatórios. Usemos o exemplo da Rede
Globo: o poder que a militância a que me refiro tem atribuído ao veículo
midiático, aparentemente capaz de robotizar a todos e ordenar toda a sociedade
com apenas alguns pronunciamentos de jornalistas, fala mais sobre o
funcionamento de sua própria mente do que sobre as intenções dos
"opositores golpistas". Nesse quesito, eles qualificam seus
"algozes" do mal que eles mesmos padecem, suficientemente fundado no
parágrafo anterior, e muito bem representado pela velocidade de assimilação e
disseminação que os posicionamentos do Partido têm em meio aos seus devotos. É
claro que não nego a influência da mídia e de seus interesses, mas é bastante
conveniente obscurecer os deslizes das lideranças políticas culpando a Globo e
fazendo parecer que as pessoas só não estão conseguindo ver a realidade por
terem sido enfeitiçadas e absorvidas por uma força conspiratória onipotente,
onisciente e onipresente - mas que, ao mesmo tempo, está tendo dificuldades de
produzir novelas que prendam a audiência. Fica parecendo que os que assim
pensam, pela iluminação gnóstica do Partido, sabem de coisas que jamais
saberemos ou entenderemos - eis o seu ônus: que o demonstrem!
É
vantajoso para um movimento falido a atribuição de todas as suas indubitáveis
culpas à jornada difamatória de alguma entidade dada por diabólica, em quem se
despejam todas as maldades dos corações que a cogitaram nas sombras fantasiosas
de seus próprios delírios. Nega-se, nesse ponto, a própria realidade concreta,
experienciada nos mercados, nos postos de gasolina, nas estradas, nos bairros e
nas casas. Um legítimo quadro de psicose, de esquizofrenia. Aqui entra a figura
do bode expiatório, um recurso compensatório para alívio moral e existencial de
grupos cuja dinâmica mental e cultural é insustentável: a criação de
espantalhos facilita a percepção de si como vítimas e qualifica seus movimentos
heterodoxos como "reações legítimas do ente injustamente perseguido por
Belial em pessoa" - cria-se, assim, uma aura de heroísmo, de sofrimento
catártico, que valida o "jeitinho" como o último recurso de
sobrevivência. É evidente que, estando a identidade de grupo e pessoa
condicionada pelas diretrizes ideológicas do Partido e dos líderes, é mais
fácil se vitimizar e direcionar, num processo de transferência, a culpa para um
inimigo imaginário, o "antideus", o "anti-Partido", o
"antiprogresso", do que reconhecer a própria falta de substância.
Deixo
ao leitor o desafio de discernir os possíveis resultados da nefasta soma dos
elementos aqui acusados. Que tipo de modo se pode produzir com a centralização
de toda a culpa em objetos, pessoas e instituições, num contexto de desnorteio
mental e moral?
* A Coerência das Incertezas, Paulo Mercadante, É Realizações, 2001
Natanael
Pedro Castoldi
Fantástico!
ResponderExcluirAtt,