Tempos de crise moral, de terra
desolada, de vastidão árida, são períodos de provação, períodos de juízo, de
infusão de luz a atormentar os demônios que preferiam se resguardar nas trevas
da Ordem e do Progresso. Ao contrário do que comumente se pensa, a imolação do
caos, cujo sangue pútrido escorre pelo altar das vaidades, espalhando pelo chão
e enrubescendo os pés dos fiéis que diante dele se postam, ainda que empesteie
todas as coisas, não desordena a moral, mas a cristaliza ainda mais: não
importa se o demônio se escora em moralismo, trajando uma máscara que bloqueia
as luzes do Juízo Final, também não importa se uma parcela da população se
esforce exaustivamente para aceitar a máscara como face legítima da figura
semidivina que encarna os ideais de suas aspirações revolucionárias e
“democráticas”, os espíritos se dividem, o escárnio explícito e cínico não
deixa escolha, deve-se tomar partido. A consciência pesa diante das evidências
e da verdadeira perturbação ao legítimo bom senso.
Nesse ponto, alguns fenômenos engraçados
se fazem ver. No devaneio de preservar a própria imagem pela suposta
neutralidade, isso em dolorosa tensão com as demandas morais próprias do ser,
algumas pessoas, apelidadas pejorativa e legitimamente de “isentões”,
justificam a continuidade de sua defesa do Mascarado e daquilo que ele
representa pela desassociarão nominal, abraçando lugares-comuns e abstrações
quase indecifráveis – falam as mesmas coisas que os partidários declarados,
tanto naquilo que defendem quanto naquilo que criticam, mas se dizem
genericamente e tão somente “de Esquerda”. Eles provavelmente investiram seu
voto para a consolidação do sistema vigente, conscientes do tipo de moralidade
sustentada pelo Partido já nas jogadas eleitorais, moralizando sua opção na
insólita e imaginativa esperança de redenção pela “Revolução”, e seguem dando
fundamentação para a permanência da mentalidade que se executa do centro do
poder, sem, contudo, arcarem com a sua responsabilidade direta – não reconhecem
culpa, cinicamente a transferem. Seguindo a opinião pública, pelo bem de sua
imagem social, identificam o fracasso pontuado e solidificado no Partido, mas
não são capazes de enxergar em si mesmos a torpeza de ideais, assim, apenas
desvisceram o Partido, jogando a carcaça fora e permanecendo com todas as suas
entranhas. Esse já é um espírito que a luz revelou e forçou à escolha.
Outro espírito revelado é o
daqueles que, reconhecendo as incontáveis acusações que têm sido desferidas
contra o sacrossanto Partido encarnado na pessoa do líder, postam-se na
irredutível defesa da sua plena beatitude, em total e inquestionada submissão
às pregações proféticas e sacerdotais dos aristocratas gnósticos. Não importa,
nesse ponto, a razoabilidade e quantidade das acusações, não importa se forem
maximamente concretas, suas motivações religiosas, resguardadas nas esperanças
que o Partido alimenta, são suficientes para o fervor emocionalista cego, uma
paixão que absorve suas consciências. Nesse ponto, perceba a incoerente
seletividade, são capazes de ver culpabilidade e absoluta verdade no mais
absurdo boato lançado contra o opositor, desde que isso favoreça a proteção do
Pai e da Mãe, a quem se dispõem para além de qualquer limite. Desses, é claro,
há os mercenários que recebem um empurrão traduzido em cifrões e status. Não é
necessário discorrer muito sobre esses casos extremados de tão baixa latitude moral,
da opção pela defesa do indefensável, moralizada por uma suposta luta em favor
de abstrações que pouco se conectam com a natureza primeira daquilo que
defendem, como a democracia, o Estado Democrático de Direito e o afastamento do
“Uncle Sam”, dos “filhotes da Ditadura” e dos diabretes capitalistas. Não
haveria espaço aqui para enumerar as falácias e desonestidades intelectuais
embutidas, tal qual mortadela, nessa via.
O último tipo de espírito dos
revelados na terra desolada que gostaria de acusar é, em verdade, o pior de
todos, embora se perceba o mais sensato. Quando as paredes caem, expondo os
corpos nus que habitam os recintos abolidos, exaurem-se as opções e deve-se
tomar posição diante a nudez revelada e indubitável. Essa última espécie,
contudo, é a única que parece gostar da oportunidade que a luz lhe oferece:
exposto, agora ele aparece para os demais e, aparecendo, pode se postar de modo
a ser admirado. Eis a classe, aproveitadora das ocasiões de extremada
imoralidade, que busca contrastar com o todo como alguém belo e moral – ele se
escora nas podridões para emergir como puro e saudável, ele se eleva do sangue
que escorre do altar para que percebam que seu aroma é diferente, para que
notem que ele não está maculado pelas correntes de corrupção. Outro espírito
definitivamente revelado! E o que ele costuma bradar quando se levanta por
sobre os demais? Obviamente ele afirma o óbvio: “há outros corruptos”. Deve ser
parabenizado pela descoberta. Mas o problema real não está nesse primeiro
pronunciamento, absolutamente desnecessário, mas na aplicação do raciocínio
que, infelizmente, prossegue: “então só é justo julgar um político corrupto se
todos os outros forem julgados”. Calorosos aplausos emanam dos mascarados que
estão sob o altar. Suspiros de admiração são ouvidos dos enlameados que estão
aos pés do palanque. Ele encontrou a solução para todos os problemas: basta que
a generalidade dos corruptos seja julgada! Todos os corruptos deliram
eufóricos!
Eis a razão de o tipo mais
incrustado de moralismo – o mais sofista de todos – ser, também, o mais
perigoso – como os moralistas costumam ser em qualquer esfera: sua postura,
assimilada pelos outros espíritos de igual natureza, dissemina uma mentalidade
que simplesmente obstrui a efetivação de sua própria proposição. No afã de
direcionar o olhar de todos para todos os corruptos, faz faltarem olhos, perde-se
o senso de proporções e a percepção de que há pontos de podridão capitais de
onde as demais venalidades emanam – julgar o prefeito da cidade faz-se, dentro
dessa lógica, tão dimensionalmente relevante quando vigiar os passos do
presidente da República. O aparente e ingênuo interesse pelo fim imediato de
toda a corrupção de todo o lugar é o próprio impedimento para que qualquer
nível de corrupção de qualquer locação seja realmente interceptado e posto na
balança da Lei. É o famoso “tudo ou nada”: se não for para julgar todos ao
mesmo tempo, então não julgue ninguém. Pela generalização da culpa desproporcionada,
a própria culpabilidade é diluída. Há um ar de visceral justiça aqui, uma
aparente beleza moral, mas, em essência, se tem pouco além de má retórica.
Estamos presos num pântano de cem saídas, pois, já que não podemos sair por
todas elas ao mesmo tempo, somos obrigados a permanecer confinados nele.
Nos encaminhemos para um exemplo
mais sólido, ilustrando bem esse tipo de espírito revelado em ação: sabemos que
o principal processo que recai sobre a presidente, o de impeachment, é um tipo
de movimento que só pode incluir ela e mais ninguém, pois é exclusivo para
tramitações acerca da liderança do Executivo – aqui não há Lava Jato, pois
centra-se nas conhecidas pedaladas fiscais por ela realizadas. Ainda assim, a
mera sugestão de que o presidente será julgado leva o moralista a bradar: “E O
AÉCIO?! E O CUNHA?” Que sejam julgados, de fato, mas o julgamento deles não têm
absolutamente nada a ver com o da presidente. É legítimo e benéfico pressionar vereditos condenatórios, todavia, sinceramente, na maioria dos casos fica parecendo duas
coisas, menos um senso de justiça legítimo: último recurso moralista de defesa da presidente e o
já esmiuçado interesse em se posicionar publicamente numa condição de admirável
lucidez moral. É muito fácil perceber as implicações desse tipo de narcisismo
obstrutivo, das famosas falácias do nariz de palhaço e do espantalho: se não é
legítimo dar cabo de um processo de âmbito presidencial sem incluir nele, ou
julgar concomitantemente, personagens reconhecidamente opositoras, então,
provavelmente, não haverá julgamento de ninguém – o que para esses eruditos
parece ser uma saída adequada e totalmente em conformidade com a lógica de suas
palavras, preferindo que ninguém seja julgado se só a presidente for. Por fim,
alegrar-se-ão pela concretização de suas ideias na famosa "pizza", uma pizza sabor
mortadela – que sejam postos em prática todos os devidos trâmites e todas as
politicagens necessárias para que nem a presidente e nem ninguém seja colocado
diretamente ao olhar petrificante de Medusa.
Um exemplo ainda mais dramático,
veiculado recentemente por artistas, é o de que outros mandatos presidenciais
também foram acusados de crimes e nada foi feito. Nesse caso, somos orientados
a nos contentar com a presente situação, pois somos incapazes de voltar no
tempo e condenar outros governos por suas vilanias. Qual a razão de tentarmos
nos redimir dos erros passados hoje, aplicando a legítima justiça, se é
possível guarnecer nosso comodismo e legitimar nossas questionáveis opções
políticas nos erros de décadas passadas, com ênfase, sempre e para variar, na
Ditadura Militar?
É possível, contudo, esforçar-se
para uma posição um pouco mais coerente com a realidade dos fatos. Com a
obviedade dos crimes e os resultados políticos, sociais e econômicos de um tipo
de política que já não mais corresponde às demandas da nação, apesar de ser sobejamente
útil para a amamentação prolongada dos
que aprenderam a barganhar com o Estado, é legítimo desejar que a presente
configuração do governo se altere e que quem o está comandando, havendo amparo
judicial, retire-se do cargo, mesmo que peixes menores não venham a perder os
seus – o que seria uma pena. De todo modo, não há golpismo nisso. E se há
legalidade nos processos, as intenções daqueles que o desenvolvem não os tornam
golpes, pois o golpe é, e sempre será, uma infração das leis que sustentam a
democracia – “golpe” é justamente aquilo que motivou a abertura dos processos.
Também não há mal algum em não se deixar levar pela falácia da rampa
escorregadia, que afirma que a saída do atual governo deixará a presente
desolação ainda mais... desolada? Acrescento que não há imoralidade no
favorecimento, em termos de proporção e necessidade, do processo presidencial
por sobre os demais, e na sustentação de que o andamento do impeachment não
deva estar condicionado ao andamento da Lava Jato, já que são situações
diferentes. Que todos sejam julgados dentro de suas esferas e de seu tempo,
começando, de preferência, com algum ponto, pois é impossível fazer qualquer
coisa se tudo tiver que ser feito concomitantemente.
Ninguém desiste de comer um
punhado de ameixas por não conseguir enfiá-las todas ao mesmo tempo na boca.
Uma por vez. Se algumas sobrarem, é melhor do que sobrarem todas.
Estou tentando ser minimamente
cético e sagaz - o mundo da política é hostil e demanda análises um pouco menos
apaixonadas. Pode, disso, ficar parecendo que pretendo anular argumentos contra
os opositores do governo, se é que eles existem – no fundo, os corruptos todos
têm bebido das mesmas fontes, partilhado dos mesmos interesses e se articulado
independentemente de partido -, mas minha intenção e as consequências de meu
pensamento favorecem justamente o contrário disso. Quem defende os corruptos
opositores é justamente aquele que, pela defesa da presidente afirma que
ninguém pode ser julgado se todos não forem julgados simultaneamente – então,
se a presidente não for, eles também não precisam ser. São esses espíritos os
que favorecem a pizza de mortadela. Meu interesse pela manutenção da ordem dos
processos e sua independência, sem estar preso a uma necessidade de me
construir socialmente como alguém “belo e moral” por meio do contraste
desonesto e irresponsável com os ofídicos crimes que se amontoam, reside na
possibilitação de que todos sejam devidamente julgados, sem “jeitinhos” desviantes
da Lei, sem o insensato uso da monolítica moralidade infantil de que “se o
outro fez eu também posso” ou, “enquanto o outro não for xingado, é injusto me
xingar”. Política é coisa de gente grande, de quem, sendo homem, e não “isentão”,
pensa como homem e arca com as responsabilidades cívicas de suas ideias e de
seus atos. Precisamos inocular a verdadeira Moral na ordem política de nosso
país e, para tal, que o moralismo meninil, ingênuo e sofismático seja revelado em sua nudez carniçal, em sua obtusa feição esqueletal.
Natanael Pedro Castoldi
Recomendo como leitura complementar o seguinte artigo:
- "Nós Também Somos Corruptos!" E Daí?
Recomendo como leitura complementar o seguinte artigo:
- "Nós Também Somos Corruptos!" E Daí?
Perdoe minha ignorância, estou procurando uma forma de entender tudo o que está acontecendo em nosso País. E com toda sinceridade, não consegui entender a quais pessoas ou classe de pessoas esse termo mortadela se refere, senão somente aqueles que supostamente se beneficiaram do tal suborno do pão com mortadela!? E se esse termo tem apenas o sentido pejorativo ou não?! Poderia me trazer um melhor esclarecimento sobre isso? Por essa dificuldade minha de compreensão, talvez eu esteja inserida no grupo dos "isentões". Me vi descrita em vários pontos apresentados no texto em questão. Contudo, não consegui captar de todo o entendimento sobre toda essa conjuntura nele apresentada. Mas isso se deve a minha dificuldade e demora de assimilação mesmo. Estarei lendo ele novamente para compreender melhor. Por hora gostaria apenas que me esclarecesse os questionamentos que apresentei.
ResponderExcluirDesde já agradeço!
Perdoe minha ignorância, estou procurando uma forma de entender tudo o que está acontecendo em nosso País. E com toda sinceridade, não consegui entender a quais pessoas ou classe de pessoas esse termo mortadela se refere, senão somente aqueles que supostamente se beneficiaram do tal suborno do pão com mortadela!? E se esse termo tem apenas o sentido pejorativo ou não?! Poderia me trazer um melhor esclarecimento sobre isso? Por essa dificuldade minha de compreensão, talvez eu esteja inserida no grupo dos "isentões". Me vi descrita em vários pontos apresentados no texto em questão. Contudo, não consegui captar de todo o entendimento sobre toda essa conjuntura nele apresentada. Mas isso se deve a minha dificuldade e demora de assimilação mesmo. Estarei lendo ele novamente para compreender melhor. Por hora gostaria apenas que me esclarecesse os questionamentos que apresentei.
ResponderExcluirDesde já agradeço!