Navigation Menu

É a primeira vez que
você acessa este blog
neste computador!


Deseja ver antes
nossa apresentação?


SIM NÃO

Existem Contradições Entre Lucas e Josefo?

-> Apresentação e Índice
Flávio Josefo, o famoso historiador judeu do Primeiro Século, é a testemunha extra-bíblica mais importante para os primórdios do cristianismo. Diversos nomes, costumes e localidades do texto neotestamentário encontram farta corroboração nos textos de Josefo, porém, supostamente nem todos esses encontros se encaixam perfeitamente, levantando uma série de questionamentos - e é lógico que, mediante os desencontros, os críticos das Escrituras preferem ter Josefo como a figura mais historicamente confiável, enquanto os evangelistas são tidos como errôneos. De todos os autores neotestamentários, aquele que mais encontra afinidade com os fatos registrados por Josefo é Lucas- nesse caso, sabe-nos perguntar: realmente há contradições severas entre o relato do Terceiro Evangelho e a obra de Josefo?
Para uma introdução mais satisfatória, leia o artigo "Uma Análise das Evidências Extra-Bíblicas Sobre Jesus"

João Batista:
O relato do historiador sobre a pregação e morte de João Batista é grandemente aceito pelos estudiosos. Vide o que ele diz:

"Vários judeus julgaram que aquela derrota do exército de Herodes era um castigo de Deus, por causa de João cognominado Batista. Era um homem de grande piedade que exortava os judeus a abraçar a virtude, a praticar a justiça e a receber o Batismo, depois de se terem tornado agradáveis a Deus, não se contentando em cometer pecados, mas unindo a pureza do corpo à da alma. Assim, como um multidão de pessoas o seguia para ouvir sua doutrina, Herodes, temendo que o poder que João tinha sobre eles viesse a suscitar alguma rebelião, porque eles estavam sempre prontos a fazer o que ele lhes ordenasse, julgou dever prevenir o mal para não ter motivo de se arrepender por ter esperado muito para remediá-lo. Por esse motivo mandou prendê-lo numa fortaleza de Maquera, de que acabamos de falar, e lá, foi executado. Os judeus atribuíram essa derrota de seu exército a um castigo de Deus, por um ato tão injusto." Antiguidades 18:116-19.

Tal narrativa parece encontrar pontos de discordância com o relato do Novo Testamento, mas ambos os documentos são fáceis de conciliar. Consideremos, primeiramente, que Josefo sempre evitou a escatologia e messianismo, e tinha uma tendência de descrever partidos religiosos judeus em termos filosóficos - isso nos ajuda a ver que o relato do historiador judeu é compatível com o NT, mesmo com divergências de perspectiva. Josefo afirma que João Batista exortava os judeus a abraçarem "a virtude, a praticar a justiça e o Batismo" - é exatamente isso que o NT nos transmite. Josefo também afirma que João Batista considerava que o Batismo é aceitável a Deus,  o que igualmente concorda com o relato do neotestamentário (Mc 1:4; Mt 3:1, 6 e Lc 3:3). Josefo diz que João incentivava a prática da justiça uns para com os outros e "à piedade para com Deus", o que o João bíblico também afirmava (Lc 3:11). Desconsiderando aquilo que Josefo desejou omitir e aquilo que o NT procurou enfatizar, podemos ver que não há discrepância entre os relatos - mas ainda sobram os motivos para a morte de João Batista, aparentemente discrepantes entre Josefo e o NT.

Marcos, em Mc 6:14-29, afirma que a morte de João Batista, já preso, se deu por este ter criticado o casamento do governador com a sua cunhada, isso enquanto Josefo sustenta que a execução foi resultado a influência de João Batista e dos temores de Herodes. Ocorre que Josefo não ofereceu uma razão para a ação de Herodes, um evento claro e derradeiro, enquanto Marcos, Mateus e Lucas nos trazem um motivo bastante claro: Herodes temia a influência de João sobre o povo e a crítica que o profeta faz ao tetrarca da Galiléia reflete as ideias daquele tempo, como a de que o regente deveria ter apenas uma mulher e ser um exemplo moral - o Manuscrito do Templo, 11QTemple 66:12-13, um dentre os Manuscritos do Mar Vermelho, confirma tais exigências. A primeira mulher de Herodes fugira para seu pai, o Rei Aretas da Nabatéia, e o comportamento do governador rompeu a frágil trégua entre a Galiléia romana e a Nabatéia - com a guerra quase certa, o governador precisava do apoio de seu povo e a condenação sugerida por João Batista através de sua crítica em nada o ajudaria. O NT não comenta sobre a situação política na qual Herodes se encontrava, mas encaixa-se perfeitamente no contexto descrito por Josefo - especialmente se considerarmos que a enfática pregação de João Batista registrada no Evangelho de João estivesse, também, no contexto de uma crítica às ações imorais de Herodes. É altamente provável que o historiador judeu tenha tentado colorir João Batista em termos de filosofia greco-romana, apagando os traços proféticos.

Pôncio Pilatos:
Sobre o Pôncio Pilatos do Novo Testamento, retratado por alguns como um personagem fictício e diferente do registrado por Josefo, levantarei algumas considerações. O Pilatos neotestamentário aparece como um homem vacilante e incerto, enquanto o de Josefo e outros escritores da Antiguidade, como Filo de Alexandria, é visto como alguém rígido e sanguinário. Ora, Lucas, em Lc 13:1, relata um evento no qual Pilatos aparece como alguém violento! Consideremos, ainda, que Filo e Josefo eram inimigos declarados de Pilatos e que, portanto, seus textos sobre ele provavelmente são tendenciosos. Dois eventos significativos são relatados por Josefo, ambos questionando o caráter de Pilatos:

Em Antiguidades 18:55-59 e Jewish Wars 2:171-174, Josefo fala de um incidente dado na noite em que Pilatos transferia estandartes militares com a imagem do imperador da Cesaréia Marítima para Jerusalém, quando um grupo de judeus rumou para Cesaréia para implorar ao governador que removesse os ofensivos estandartes - Pilatos cedeu, mas somente depois de os judeus deixarem claro que estariam dispostos a morrer se isso não fosse feito. Noutra ocasião, registrada em Antiguidades 18:60-62 e Jewish Wars 2:175, Josefo afirma que Pilatos tirou dinheiro do tesouro do Templo para realizar obras municipais - o recurso foi tirado do tesouro sagrado, uma oferta consagrada chamada "korban", ofendendo grandemente os judeus. Provocando a manifestação do povo, o governador contornou a situação enviando soldados disfarçados para o meio da multidão para surrar os manifestantes no tempo oportuno. Nas duas situações podemos reparar no estranho silêncio dos sacerdotes regentes - retirar parte do tesouro do Templo não seria possível sem o aval e a ajuda dos próprios sacerdotes. Fica claro que Caifás, o sumo sacerdote, colaborava com Pilatos - tanto que Caifás foi destituído do cargo logo depois de Pilatos ser removido por advento de um brutal ataque aos samaritanos em 37 d.C. Antiguidades 18:88-89 e 95.

Tais relatos realmente parecem entrar em desacordo com a imagem que Lucas transmite de Pilatos, mas não podemos afirmar que o Terceiro Evangelho não nos traz nenhum indício da severidade do governos romanos: Lucas 13:1 sugere um evento no qual Pilatos massacrou um grupo de galileus. Somando os relatos de Filo, Josefo e a passagem de Lucas, muitos estudiosos foram levados a pensar que Pilatos não tivesse respeito algum pelos sentimentos judaicos e que a sua reação às manifestações judaicas quase sempre fosse violenta, posição que não entra em total harmonia com o contexto e a análise das citações. Para começar, consideremos o caso dos estandartes, no qual Pilatos simplesmente cedeu, não matando ninguém. Também é interessante verificar que a utilização do tesouro do Templo só foi possível através do consentimento das autoridades religiosas judaicas - é possível que o ataque contra a multidão que protestava contra o uso desse dinheiro tenha sido o mesmo mencionado em Lucas 13, fazendo-nos ter apenas evidências para um único encontro sangrento entre Pilatos e seus súditos judeus. O ataque aos samaritanos resultou no fim da sua carreira.

O ataque de Pilatos aos samaritanos, ocorrido em 36 d.C., também não foi somente uma covardia sem sentido. Naquele tempo um profeta samaritano persuadiu muitos de seus compatriotas de que Deus havia lhe mostrado onde estavam os utensílios perdidos do templo, juntando muitos aos pés do Monte Gerizim, onde outrora ficara o templo samaritano. Josefo, em seu relato, sugere que uma insurreição nacional, acompanhada de uma renovação, fazia parte do itinerário do profeta. Além disso, havia forte rivalidade entre judeus e samaritanos, de modo que Caifás pode ter instigado Pilatos ao ataque para evitar que estes construíssem um templo rival - é possível, ainda, que Caifás tenha interpretado de modo alarmante as ações dos samaritanos, pressionando o governador. É por isso que, feito o ataque, tanto Pilatos quanto Caifás foram removidos de seus postos. Há outras histórias de governadores romanos que agiram por pressão de sacerdotes, como ocorreu com Cúspio Fado (46-48 d.C.) e Antônio Félix (52-60 d.C.). Com isso não se está almejando apresentar um Pilatos santo - ele era, definitivamente, um indivíduo corrupto e cruel, mas, sendo coerentes com a realidade, não devemos exagerar os fatos como fizeram Josefo e Filo. Considerando as evidências nos aproximamos da ideia de um Pilatos um pouco menos sanguinolento, que, por sinal, combina mais com a descrição bíblica da sua participação na crucificação de Cristo.

É lógico que o interesse de Pilatos em Cristo era essencialmente político. Nenhuma decisão poderia ser mais arriscada para Pilatos, tendo em vista a tendência judaica de se revoltar contra Roma: ele teria que julgar um judeu na véspera da Páscoa, o dia mais sagrado do calendário judaico, enquanto Jerusalém estava lotada de judeus praticantes e ansiosos pela libertação de Israel. De um lado estavam Caifás e seus associados, que haviam se ofendido com alguns dizeres e feitos de Jesus, do outro havia um grupo de seguidores que amavam o Messias. Seria sábio executar publicamente um "pregador e curador" potencialmente inocente? Isso na véspera da Páscoa? Seria sensato fazê-lo por pressão da aristocracia religiosa, odiada por muitos judeus, somente por Cristo ter ofendido alguns de seus membros? Somente depois de Jesus ter se recusado a negar as acusações contra ele desferidas, é que foi condenado, mas não sem antes uma acusação séria  contra o império ser sugerida - a de que ele se denominava "o rei dos judeus" - e de Pilatos ter depositado toda a responsabilidade sobre as autoridades judaicas. O governador foi astuto ao tentar diminuir o máximo possível a sua responsabilidade sobre a morte de Jesus.

Outro questionamento ao texto bíblico está na suposta ausência de evidências de que prisioneiros eram soltos na véspera da Páscoa, embora os quatro Evangelhos sustentem tal costume de Pilatos. A verdade é que outras fontes antigas afirmam que muitos governadores romanos e autoridades judaicas costumavam libertar prisioneiros em diversas ocasiões, inclusive na época da Páscoa. Algumas dessas evidências se encontram na "mishná" ("Pesahim" 8:6), no papiro Flor 61, de 85 d.C., na obra de Plínio, o Moço (Epístolas 10:31), no trabalho de Lívio (História de Roma 5:13.8) e em Josefo (Antiguidades 17:204 e 20:215).

O relato de Josefo também combina muito bem com a descrição do processo pelo qual Cristo passou antes de ser crucificado - lembrando que a crucificação realmente era uma forma de julgamento comum no Império Romano para lidar com criminosos mais perigosos. Segue um trecho do Jewish Wars 6:300-309, que trata do julgamento de Jesus ben Ananias, que começou a profetizar em 62 d.C.:

"Quatro anos antes da guerra [...] veio à festa, em que é costume dos judeus erguer tabernáculos a Deus, um certo Jesus filho de Ananias, um lavrador indouto que, de repente, ficou em pé no templo e exclamou: 'Uma voz do oriente, uma voz do ocidente, uma voz dos quatro ventos, uma voz contra Jerusalém e o santuário, uma voz contra o noivo e a noiva, uma voz contra todas as pessoas' (Jr 7:34) [...] Alguns dos principais cidadãos, irados com essa fala maldosa, prenderam o homem e o açoitaram muito. Mas ele, nada falando em sua própria defesa nem em particular aos que o açoitaram, continuava a gritar como antes. Então, os governadores o levaram ao governador romano. Ali, embora tendo os ossos esmagados, não implorou misericórdia nem chorou... Quando Albino, o governador, perguntou-lhe quem era e o que fazia, e por que gritava assim, ele não deu resposta [...] Albino o pronunciou como louco e o soltou [...] Ele gritou especialmente nas festas [...] Enquanto clamava do muro: 'Mais uma vez, ai da cidade, do povo e do santuário...' uma pedra... o derrubou e o matou."

Tanto Jesus Cristo quanto Jesus ben Ananias entraram no Templo e proferiram ameaças proféticas contra o Templo, ambos foram presos pelas autoridades judaicas, sendo surrados e interrogados. Depois os dois foram entregues ao governador romano e interrogados por este, além de serem açoitados. A única diferença foi que Cristo foi condenado à morte enquanto Jesus ben Ananias foi liberto.

Até mesmo a zombaria que Jesus sofreu dos soldados romanos encontra corroboração noutros documentos. Filo descreve a zombaria sofrida por um lunático de nome Carabas: "Colocaram uma folha de 'biblus' em sua cabeça, como se fosse uma meia-coroa, vestiram-no com um tapete à guisa de manto real, enquanto alguém que encontrou um pedaço do papiro nativo jogado pela rua, deu-lho como cetro. Ao receber a insígnia real, jovens carregando varas nos ombros e homens portando lanças ladearam-no como uma guarda de honra - uma farsa teatral em que ele se deixava enganar." In Flaccum 36-39. A humilhação sofrida por um suposto pretendente a imperador, Vitélio, 69 d.C. (Dio Cassius, Roman History 64:20-21), uma declaração do imperador Adriano e de uma embaixadora judia encontrada no Papiro do Louvre 68.1.1-7, e a redação de Plutarco em Pompeu 24:7-8, também sustentam aquilo que os soldados romanos fizeram com Cristo.

Existe alguma evidência de Pilatos fora da Bíblia e de Josefo?
Há uma inscrição encontrada no antigo teatro da Cesaréia Marítima que cita Pilatos:

"Tibério Náutico
Pôncio Pilatos
Magistrado da Judéia
Restaura..."

Conclusão:
Considerando as diferentes naturezas e objetivos dos textos neotestamentários e da obra de Josefo, é verificável que os trabalhos se complementam, não se contradizem. Além da análise dos textos e das intenções dos autores, podemos encontrar em outros documentos e inscrições parâmetros de análise para melhor entendermos e sustentarmos os relatos sugeridos pela Bíblia e/ou por Josefo. Ainda assim, devemos ter cuidado no uso que fazemos de Josefo, reconhecendo as suas aspirações políticas - embora a sua obra tenha sido amplamente sustentada pela arqueologia, o relato neotestamentário tem sido considerado praticamente perfeito em sua coerência com as evidências encontradas, tanto em Josefo quanto noutros documentos e artefatos arqueológicos, além de ter sido redigido pouquíssimo tempo depois dos eventos por ele tratados e, especialmente nos casos de Lucas e João, apresentar um relato simples, quase livre de interpolações e plenamente característico de testemunhas oculares.
Fonte: O Jesus Fabricado, Craig Evans, Cultura Cristã, 2009, pgs 143-161.

Natanael Pedro Castoldi

Leia também:
- O Testemunho Ocular do Evangelho de João
A Precisão do Relato de Lucas
- Os Mais Antigos Testemunhos do Novo Testamento

0 comentários: