Existem duas categorias básicas de livros considerados apócrifos: os livros deuterocanônicos, que constituem o cânon veterotestamentário escrito originalmente em grego, e os livros pseudepigráficos. A primeira categoria levanta impasses entre cristãos católicos e protestantes, enquanto a segunda alimenta os delírios dos inimigos da fé em sua empreitada contra as Escrituras. Pela relevância que o debate sobre os deuterocanônicos suscita na Igreja e pela paixão da mídia pelos pseudepigráficos, parece-me de interesse geral publicar algumas reflexões sobre o assunto.
Observação: como o leitor deve saber, sou protestante, sim, mas como o leitor bem pode compreender com a análise do material que divulgo não me ocupo em contestar pontos doutras igrejas, resumindo todos os meus escritos à exposição honesta e sincera de conhecimentos para os cristãos, sem distinção, já que procuro não categorizar as diferentes correntes do cristianismo (com exceção das heresias, que nem cristianismo são) em nome do fortalecimento geral. O objetivo aqui é o cristianismo e, dessa forma, falarei com base em minhas fontes sobre o assunto dos apócrifos com referência, do início ao fim, ao que os cristãos fizeram e pensaram, sem diminuir ou atacar diferentes grupos - é claro, na medida do possível, conforme os meus livros permitirem. Não apoio o ecumenismo, mas entendo que existem prioridades. Espero que todos analisem as informações com imparcialidade e interesse. Obrigado!
- Significado de "apócrifo":
A palavra "apócrifo" significa "escondido", apontando para os "livros que foram escondidos" - alguns gostam de afirmar que se trata "daquilo que precisa ficar escondido". Como era de se esperar, tal significado levantou toda a espécie de interpretação maliciosa, principalmente a de que, "por seu conteúdo incômodo, tais livros foram ocultados e odiosamente esquecidos". A realidade, porém, é muito menos arisca: originalmente o termo "apócrifo" referia-se exclusivamente aos livros que os cristãos valorizavam como Escritura, mas que não eram observados pelos judeus e, como os "judeus jamais destruiriam livros religiosos respeitados; sendo inadequados para o uso, eles seriam escondidos e deixados para se deteriorarem de forma natural." Os judeus geralmente respeitaram toda a forma de literatura e dificilmente queimavam livros, preferindo depositá-los em "cemitérios", e é por causa disso que os arqueólogos de nossos dias conseguem encontrar esses documentos. Ou seja: os judeus simplesmente engavetavam livros que não lhes eram úteis, orientando a comunidade judaica a não os considerar como inspirados, mas isso sem desrespeitar tal material e sem restringir a liberdade de leitura de outros grupos, como os cristãos.
Fonte: Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizadores: Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Capítulo 10, Roger T. Beckwith, Vida Nova, 2013, pg 91.
- A questão dos deuterocanônicos:
Foi para esses (os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento) que Jerônimo, tradutor bíblico e autor da Vulgata, que é a Bíblia em latim, primeiro utilizou o termo "apócrifo". Tal categoria de livros, os livros do "segundo cânon", apresenta obras de valor doutrinário, histórico e moral, embora se discuta sobre a validade de alguns trechos desse material e a sua condição como inspirados por Deus. Em algumas bíblias há uma seção separada, colocada entre o Antigo e o Novo Testamento dedicada a esse material, noutras os apócrifos espalham-se por todo o Antigo Testamento, nalgumas tais livros apresentam-se numa divisão depois do Novo Testamento e, por fim, há aquelas nas quais eles simplesmente não aparecem. Um lado favorece o seu conteúdo e a tradição entorno deles, enquanto outro aponta para a percepção judaica e algumas incoerências internas dos mesmos.
A questão aos olhos da Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, pg 1973:
"A igreja primitiva se desenvolvia, por isso os cristãos gentios precisavam aprender a 'sã doutrina' (Tt 2:1). Apesar de Paulo e os apóstolos usarem exclusivamente o AT como Bíblia canônica, os gentios também encontraram muitos textos religiosos judaicos entre os rolos gregos das Escrituras. Muitos cristãos gentios, sem dúvida, adotaram esses livros como confiáveis, e o debate sobre o seu lugar nas igrejas se intensificou desde então.
O termo 'apócrifos' ('escondidos') indica, de modo geral, um grupo de livros não canônicos. Entretanto, a coleção comumente designada Apócrifos é limitada a 14 ou 15 documentos que foram, em sua maioria, escritos durante os séculos II a.C. e I d.C. Os Apócrifos, na verdade, representam apenas uma poção muito pequena da extensa literatura judaica desse período." Os manuscritos antigos da Bíblia grega (Septuaginta), incluem os ditos apócrifos que, durante os primeiros séculos da Igreja, foram bastante lidos e estudados, sendo considerados canônicos por alguns (Agostinho, "A Cidade de Deus", 18.36). Um grupo de estudiosos cristãos, porém, percebia discrepâncias entre as Bíblias grega e hebraica, tanto que Jerônimo, em sua tradução latina da Bíblia, para qual se baseou na Bíblia hebraica, fez cuidadosa distinção entre os textos que considerava canônicos e o grupo que, como já comentado, designou como "Apócrifos".
Martinho Lutero contestou algumas passagens apócrifas, como 2 Macabeus 12:45-46, texto que, segundo ele, era usado pela Igreja Católica Romana para sustentar a doutrina do purgatório e a venda de indulgências. Em sua tradução da Bíblia para o alemão (1534), Lutero imprimiu os apócrifos num suplemento separado, sem intercalá-los no meio do Antigo Testamento. O Concílio de Trento, em 1546, rejeitou as posições de Lutero e declarou os apócrifos como livros "deuterocanônicos", ou seja, pertencentes a um "segundo cânon" do Antigo Testamento.
"Vários Apócrifos são pseudônimos, isto é, afirmam ter sido escritos por uma personagem importante do Antigo Testamento, como Jeremias, mas foram de fato escritos bem depois da época do suposto autor."
A questão aos olhos dO Novo Dicionário da Bíblia, J. D. Douglas, Vida Nova, 2006, pgs 64-67:
"(...) apesar de não serem aprovados para o ensino público, não obstante têm valor para o estudo e a edificação particulares. O termo [apócrifo] cobre certo número de adições aos livros canônicos em sua forma LXX (por exemplo, Estar, Daniel, Jeremias e Crônicas), bem como outros livros, lendários, históricos ou teológicos, muitos deles originalmente escritos em hebraico ou aramaico, mas preservados ou conhecidos até recentemente comente no grego; esses livros figuram no cânon mal definido da LXX, mas foram excluídos do cânon reconhecido em Jamnia." O uso e a opinião cristãs sobre o assunto eram muito ambíguas até o Século XVI, quando o Concílio de Trento reconheceu doze obras deuterocanônicas, enquanto as igrejas protestantes, embora reconhecessem o seu valor para edificação particular, definiram-se na sua rejeição como Escritura.
A questão aos olhos do livro Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizadores: Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Capítulo 10, Roger T. Beckwith, Vida Nova, 2013, pg 91-92:
Jerônimo (345-420 d.C.) considerou em sua tradução, a Vulgata, os Apócrifos como parte diferenciada do Antigo Testamento hebraico, como já dito anteriormente. A Vulgata foi traduzida do original hebraico, mas antes da Vulgata latina, já havia outra tradução em latim, a Vetus latina, copiada à partir da Septuaginta, a Bíblia grega. Nalgum momento, documentos que não integravam a Bíblia hebraica acabaram sendo incluídos no Antigo Testamento grego e de lá passaram para a Vetus latina. Jerônimo não excluiu esse material na Vulgata, mas fez questão de incluir notas explicativas em vários pontos para destacar que "os acréscimos não consistiam em partes genuínas da Bíblia, designando-os 'apócrifos'". É dito que as posições protestantes do Século XVI se basearam no ensino de Jerônimo e no entendimento que Jesus, os apóstolos e os primeiros cristãos demonstraram sobre o Antigo Testamento.
Provavelmente Jerônimo seguiu os passos de Orígines em suas percepções do Antigo Testamento, já que o mesmo havia declarado, um século e meio antes de Jerônimo, que os judeus usavam o termo "apócrifo" para denominar seus livros não canônicos, porém apreciados. Dando um passo além, o estudioso das Escrituras considerou como "apócrifos" documentos não canônicos de origem cristã, como O Pastor, de Hermas.
Como as traduções grega e latina passaram a incluir os apócrifos? Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizadores: Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Capítulo 10, Roger T. Beckwith, Vida Nova, 2013, pg 92:
O Códice Alexandrino (um grande manuscrito do quinto século d.C. de toda a Bíblia grega) foi impresso e publicado no século 18, contendo os apócrifos. Por ter sido publicado com os livros deuterocanônicos, porém, foi entendido pelos leitores que o Antigo Testamento desse manuscrito cristão tivesse sido copiado de manuscritos judaicos que também os incluíam, de modo que os apócrifos deveriam integrar a tradução e o cânon dos judeus de língua grega de Alexandria, que o produziram no período pré-cristão - ainda que eles não integrassem a Bíblia ou o cânon dos judeus de língua semita da Palestina. Tal hipótese foi sustentada por muitos anos e até se formou a teoria de que a maior parte dos apócrifos fora escrita originalmente na Palestina para sustentar esse fato. Há objeções:
1 - Os manuscritos de pele de animal suficientemente grandes para conter todo o Antigo Testamento passaram a existir entre cristãos ou judeus apenas na parte final do quatro século. Os manuscritos bíblicos mais antigos de origem cristã se encontram em papiros, e sua extensão equivale apenas ao tamanho de três dos maiores livros.
2 - Os judeus de Alexandria eram grandemente orientados pela comunidade judaica da Palestina, tornando improvável a formação de um cânon diferente. Além disso, Filo, seu maior escritor, mesmo tendo feito frequentes citações do Antigo Testamento, não citou os apócrifos nenhuma vez.
3 - Os manuscritos bíblicos mais antigos de origem cristã contêm pouquíssimos livros apócrifos, e, até cerca de 313 d.C., apenas Sabedoria, Tobias e Eclesiastes chegaram a estar presentes.
4 - Quase todos os apócrifos, com exceção de Sabedoria e 2 Macabeus, parecem ter sido traduzidos a partir do original hebraico ou aramaico.
"O Novo Testamento parece demonstrar conhecimento de um ou outro texto apócrifo, mas nunca lhes confere autoridade como faz com muitos livros canônicos do Antigo Testamento. Ainda que o Novo Testamento cite várias partes do Antigo cerca de trezentas vezes, na verdade ele nunca cita os apócrifos (os versículos 14 e 16 de Judas não contém uma citação dos apócrifos, mas de outro escrito judaico, 1 Enoque). No segundo século, Justino Mártir e Teófilo de Antioquia, que mencionavam com frequência o Antigo Testamento, jamais aludiram a nenhum livro dos Apócrifos. No fim do segundo século, Sabedoria, Tobias e Eclesiástico foram algumas vezes tratados como Escritura, mas isso jamais ocorreu com nenhum outro texto apócrifo. A aceitação definitiva deles nas traduções grega e latina foi um processo vagaroso."
Durante o Primeiro Período do Concílio de Trento é que foi decidido que o "cânon católico da Escritura, diferente do hebraico de S. Jerônimo e de Martinho Lutero, devia abranger também os escritos deuterocanônicos." Fonte: História da Igreja Católica, Josef Lenzenweger, Peter Stockmeier, Johannes B. Bauer, Karl Amon e Rudolf Zinhobler, Loyola, 2006, pg 242. Segundo o já utilizado livro "Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia", pg 94, o crescente interesse da Igreja de antes da Reforma em ter os apócrifos como mais do que apenas fonte de edificação, mas Escritura, reflete a perda de contato dos cristãos com a tradição judaica. Mesmo assim, o pensamento judaico com relação ao Antigo Testamento se manteve firme na mente de alguns estudiosos, como Orígenes, Epifânio e Jerônimo - esse terceiro, como já dito, considerou necessário destacar com muita ênfase a distinção entre os apócrifos e o Antigo Testamento judaico, coisa que apenas uma parte dos teólogos medievais preservaram. O Concílio de Trento (1545-1563), porém, buscou suprimir a diferença entre os dois cânons, como reação ao posicionamento enérgico dos protestantes. No Concílio os livros de 1 e 2 Esdras e Oração de Manassés foram descartados, mas o restante dos apócrifos que habitam o Antigo Testamento católico foram colocados no nível de Escritura e isso com base em três fundamentos:
1 - Consideração da tradição oral de Roma; 2 - Entendimento de que a Igreja pode produzir Escritura; 3 - A análise de que os apócrifos sustentavam pontos de interesse doutrinário da ICAR - os apócrifos serviram com alguns pontos para a formulação de determinados conceitos teológicos e, portanto, oficializá-los sustentaria com mais poder tais concepções que, de qualquer forma, sendo fruto de tradição e da produção escriturística da própria Igreja em questão, nutriam autoridade em si mesmos, conforme dito no Concílio que observamos. Em resumo: foi considerado que a Igreja tem autoridade de produção escriturística e fortalecida a tradição oral do cristianismo latino -> os apócrifos ajudaram a formular algumas doutrinas da ICAR (purgatório, justiça das obras e indulgências) -> tais doutrinas brotaram a autoridade escriturística e oral da Igreja latina -> os apócrifos foram considerados Escritura com base na consideração da autoridade escriturística e da tradição da Igreja -> os apócrifos apoiaram conceitos que a Igreja, em sua vislumbrada autoridade escriturística e de tradição, estava definindo ao longo do tempo. A aceitação dos apócrifos, portanto, depende totalmente da validade das doutrinas que consideram a Igreja de Roma como uma instituição com capacidade de produção escriturística e doutrinária, com ênfase no poder da tradição - aqui se inicia um debate que não tem espaço no meu blog. O leitor poderá encontrar uma infinidade de respostas se pesquisar com sinceridade e esforço - e é esperado que leia argumentos protestantes e católicos sobre o assunto.
- Pontos positivos e negativos dos apócrifos deuterocanônicos:
Precisamos fortalecer o diálogo entre protestantes e católicos. Acima expliquei a aceitação dos apócrifos de uma forma coerente com a argumentação católica, mas os protestantes também têm seus pontos e tais devem ser considerados, mas sem abolir aquilo que de bom há nesses livros e que, infelizmente, tem sido descartado por posicionamentos radicais da parte dos cristãos reformados - a leitura desses livros, mesmo que o leitor não os considere como Escritura, é bastante edificante.
Pontos positivos:
Não falo dos pontos que são positivos somente para os católicos, refiro-me aos benefícios universais desse material, benefícios considerados pelos próprios leitores protestantes que, ainda que evitassem algumas passagens controvertidas "continuaram lendo os apócrifos de forma geral como literatura religiosa edificante. Os apócrifos, como outros escritos pós-canônicos (em especial os Pseudepigráficos, os Manuscritos do Mar Morto, os escritos de Filo e de Josefo, os Targuns e a literatura rabínica antiga) podem ser úteis de outras formas. Eles apresentam as interpretações mais antigas dos escritos do Antigo Testamento; explicam o que aconteceu no período entre os dois Testamentos; apresentam costumes, ideias e expressões que fornecem um repertório útil para a leitura do Novo Testamento." Nesse ponto protestantes e católicos devem concordar, mesmo que parcialmente, já que o segundo grupo trabalha com a evolução do pensamento teológico, de modo que, tanto para o protestante quanto para o católico, os apócrifos não podem ser lidos como fontes inquestionáveis de autoridade. Questões sobre as divergências para com a Sola Scriptura eu não quero trabalhar aqui - não quero favorecer os fanáticos de nenhum dos lados, seja protestante, seja católico. Fonte: Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizadores: Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Capítulo 10, Roger T. Beckwith, Vida Nova, 2013, pg 95. Todos deveriam ler os apócrifos!
Pontos negativos:
Os protestantes começam a sua avaliação na pessoa de Jerônimo, que, como já repetimos exaustivamente, produziu a Vulgata com base na Bíblia hebraica, não grega e, assim, soube reconhecer as distinções claras de doutrina e canonicidade entre os apócrifos e o Antigo testamento judaico. É claro que as percepções posteriores da Igreja latina sobre a sua autoridade escriturística solucionaram tais questões. Mas, de todo modo, como os reformadores se propuseram a saltar para o passado mais primitivo da Igreja e das Escrituras, preferiram considerar como revelação veterotestamentária apenas aquilo que os judeus reconheciam que Deus lhes tinha revelado - é interessante a semelhança entre a Reforma e o Renascimento, pois ambos buscaram retornar e reviver o passado. Bom, uma vez considerando o cânon hebraico, os protestantes analisaram o conteúdo dos apócrifos e alegaram a existência de algumas passagens complicadas:
Embora os teólogos reformados tenham encontrados passagens que ganham sustentação no Novo Testamento, como Sabedoria 4:7 e 5:16, que falam sobre o juízo pessoal após a morte, em concordância com Hebreus 9:27, alguns trechos não encontram evidente fundamento neotestamentário. Tais teólogos apontaram para alguns deles:
- Em Tobias 12:15 é dito sete anjos permanecem diante de Deus e apresentam para ele as orações dos santos.
- Em 2 Macabeus 15:13-14 é dito que um profeta falecido ora pelo povo de Deus na terra.
- Em Sabedoria 8:19-20 e em Eclesiástico 1:14 é informado que os justos são as pessoas que receberam uma alma boa ao nascer.
- Em Tobias 12:9 e em Eclesiástico 3:3 é dito que as boas obras expiam os atos maus.
- Em 2 Macabeus 12:40-45 é incentivada a oração pelo perdão dos pecados dos mortos.
"As duas primeiras ideias não encontram nenhum apoio no Antigo Testamento nem no Novo, e a segunda pode ter dado algum apoio ao conceito católico romano de oração aos santos falecidos. Os últimos três princípios sem dúvida contrariam o ensino do Novo Testamento sobre a regeneração, a justificação e a vida presente como o período de provação." Fonte: Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizadores: Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Capítulo 10, Roger T. Beckwith, Vida Nova, 2013, pg 98. Eu particularmente não notei grandes problemas nos textos de Tobias 12:15 e Eclesiástico 1:14, mas como a minha fonte os apresenta e existe uma tradição interpretativa sobre eles, não considerei honesto omiti-los. Se alguém se ofendeu com o apontamento dessas passagens ou com minhas observações sobre a validade de algumas delas, não me importo, pois não estou aqui para paparicar o tipo de cristão que não sabe enfrentar o questionamento - eu não quero aproximar de mim gente de cunho fanático, não escrevo para pessoas assim, da mesma forma que não escrevo diretamente para os neo-ateus. Esse pessoal costuma causar problemas e barrar o diálogo saudável - querem controlar a fonte de informação para favorecê-los, como crianças mimadas. O avanço do conhecimento e do debate teológico só é possível com a honesta exposição e aceitação dos fatos. Eu, conforme possibilitam as minhas limitadas fontes, quero expor os fatos e instigar uma pesquisa mais profunda, para que o leitor conclua aquilo que achar melhor - e essa pesquisa da parte do leitor envolverá, principalmente, a leitura dos apócrifos, pois apenas o experimento individual possibilitará um julgamento realmente honesto.
- Sobre o que falam os apócrifos:
Livros Históricos:
1 Esdras (3 Esdras), 100 a.C.: narra os mesmos dados históricos encontrados nos livros canônicos de Esdras, Neemias e 2 Crônicas.
1 Macabeus, 140 a.C.: uma obra de caráter histórico que relata a rebelião da família dos macabeus contra Antíoco Epifânio e seus sucessores.
2 Macabeus, 100 a.C.: uma obra que afirmar ser de Jason de Cirene, abrangendo parte do mesmo período de 1 Macabeus e se opondo com fervor ao paganismo grego.
Lendas Religiosas:
Tobias, 150 a.C.: um conto de piedade judaica que relata como Tobias, um judeu reto, se recuperou da cagueira. Tal é uma fábula com ambientação persa.
Judite, 150-100 a.C.: uma narrativa sobre uma viúva judia, bela e devota, chamada Judite, que salva a sua cidade do exército de Nabucodonosor ao decapitar o general sírio de nome Holofernes.
Acréscimos a Ester, 115 a.C.: tais passagens foram acrescentadas ao livro de Ester no texto da Septuaginta. Resumem-se nas seguintes questões: o sonho de Mordecai (antes de Ester 1:1); uma carta do rei ordenando o extermínio de todos os judeus do reino (depois de Ester 3:13); orações de Mordecai e Ester (depois de Ester 4); a audiência dramática de Ester com o rei Assuero (soma 14 versículos a Ester 5); uma carte do rei relatando a morte de Hamã, louvando os judeus e permitindo que estes se defendam (depois de Ester 8:12); a interpretação do sonho de Mordecai e um comentário final sobre o significado de Purim (depois do último capítulo de Ester). Tomei como referência a configuração protestante da Bíblia.
Oração de Azarias e o cântico dos três jovens, 150-50 a.C.: uma oração eloquente, um relato de livramento miraculoso e um salmo de louvor (depois de Daniel 3:23).
A história de Susana (Daniel e Susana), 150-50 a.C.: uma narrativa sobre como susana foi inocentada de falsas acusações de adultério através da intervenção oportuna do jovem Daniel (aparece antes ou depois do texto canônico de Daniel).
Bel e o Dragão, 150-50 a.C.: duas lendas que visam ridicularizar a idolatria. Daniel prova que os sacerdotes de Bel estão consumindo as ofertas feitas a esse deus; Daniel destrói um dragão adorado na Babilônia ao alimentá-lo com uma estranha mistura que o faz explodir; Daniel é jogado na cova dos leões, onde é alimentado por Habacuque, que foi carregado por anjos pelo cabelo até a Babilônia.
Literatura de Sabedoria:
Sabedoria de Salomão, 50 a.C.: fala da imortalidade, contrastando o destino do justo com o do perverso. Fala sobre a natureza da sabedoria, narra a história de Israel no Egito e no deserto e discute sobre as origens e os males da idolatria.
Eclesiástico, 180 a.C.: um conjunto de aforismos e ditados sapienciais.
Baruque, 150-60 a.C.: obra que afirma ter sido escrita por Baruque, o secretário de Jeremias, na Babilônia. Contém orações e confissões de exilados judeus, com promessas de restauração.
A oração de Manassés, 175-25 a.C.: uma oração penitencial de Manassés, o rei perverso de Judá, segundo afirma. Aparece na Septuaginta logo depois de 2 Cr 33:19.
Literatura Apocalíptica:
2 Esdras (4 Esdras), 100-250 d.C.: fala sobre o problema do mal, o Império Romano e a vinda do Messias. Explica como Esdras reescreveu a literatura sagrada. Foi preservado em latim, não grego, e possui dois capítulos cristãos acrescidos no princípio e outros dois no final do documento.
Fonte: A Bíblia de Estudo Anotada Expandida, Charles C. Ryrie, Mundo Cristão, 2007, pg 900; Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizadores: Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Capítulo 10, Roger T. Beckwith, Vida Nova, 2013, pgs 95-96.
Observação: como se tratam de textos de cunho histórico, moral e fabuloso, é natural que algumas de suas declarações encontrem respingos no Novo Testamento. Não podemos nos surpreender ao encontrar textos moralmente corretos em livros escritos por judeus; devemos considerar que a Israel do Novo Testamento é fruto histórico de alguns relatos deuterocanônicos e que, sim, algumas influências do imaginário popular repousaram sobre os autores dos textos da Boa Nova. Semelhanças de relato entre textos é o mínimo que esperamos de documentos históricos e doutrinários produzidos pelo mesmo povo (ou relacionados a ele). De qualquer forma, ao encontrarmos reforços históricos e morais dos deuterocanônicos no Novo Testamento, evidenciamos o grande valor que possuem.
- A formação judaica do Cânon do Antigo Testamento:
Sobra-nos, dentro dessa analise, falar sobre como os judeus formaram o cânon que Jerônimo e os protestantes tomaram como base. Verifiquemos o que algumas das minhas fontes afirmam:
O processo de canonização literária:
Primeiramente, as antigas leis mosaicas foram preservadas na Arca da Aliança (Dt 31:9), inicialmente dentro do Tabernáculo e depois no Templo. Elas eram copiadas sem alteração (Dt 4:2; 12:32) e lidas publicamente a cada sete anos (Dt 31:10-13). O autor de um escrito tinha que ser um profeta israelita que falasse em nome do Senhor e o cumprimento das profecias de alcance limitado era fator de autenticação (Jr 28:15-17). Por fim, suas mensagens eram guardadas com reverência e obediência. A autoridade dos livros canônicos era reconhecida desde a data da sua composição, e os profetas posteriores frequentemente citavam as obras de seus antecessores como Escritura inspirada (Jr 26:18 cita Mq 3:12; Dn 9:2 alude a Jr 25:11-12). Os escritos rabínicos e de historiadores judeus antigos, como Flávio Josefo, tão farto testemunho de que a autoria profética era essencial para que um livro fosse incluído no cânon. A conclusão do AT coincidiu com a cessação da atividade profética.
As testemunhas mais antigas numeravam os livros do AT com até 24 livros, mas isso porque os 12 profetas menores eram unidos num único livro e 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas e Esdras e Neemias eram contados como um livro cada - no final das contas, há uma correspondência bastante antiga dos 39 livros que constituem o Antigo Testamento do cânon judaico atual. Outras listas juntavam Juízes e Rute e Lamentações e Jeremias para formar um cânon com 22 livros e, assim, corresponder ao número de letras do alfabeto hebraico. Os livros do AT eram às vezes divididos em três categorias: a Lei, os Profetas e os Escritos. Tais categorias, comportando os 39 livros do cânon hebraico, já apareceram assim na Septuaginta, e fragmentos de todos eles, exceto Ester, foram encontrados entre os rolos dos Manuscritos do Mar Morto, que datam de 150 a.C. a 150 d.C. Jesus e os apóstolos, ao falar sobre "a Lei e os profetas", reconheceram esse mesmo cânon.
Em Jâmnia, 90 d.C., o status de alguns livros do AT foi debatido por estudiosos judeus, sob a suposição de que já eram aceitos como canônicos. Ali se falou sobre as aparentes discrepâncias entre os relatos (como entre Ezequiel 40-48 e Levítico), o visível ceticismo de Eclesiastes, o erotismo de Cântico dos Cânticos e a falta de uma referência direta a Deus em Ester.
Uma teoria já citada, afirma que existiu um cânon judaico em Alexandria, no Egito, que incluía os Apócrifos, porém, como outrora dito, Filo de Alexandria (20 a.C. - 50 d.C.) nunca mencionou nenhum deles como Escritura e muitos pais da Igreja (Orígenes, Atanásio, Crisóstomo e Jerônimo) raramente os citavam e não se sentiam confortáveis com a questão da sua canonicidade. Os primeiros manuscritos da Septuaginta (séculos 4 e 5 d.C.) incluíam alguns dos apócrifos, provavelmente como literatura adicional, mas a lista deles não corresponde adequadamente aos 14 livros apócrifos designados no Concílio de Trento, em 1546. Fonte: Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, pg 1552.
"Não há evidência de que os judeus ou cristãos do primeiro século considerassem outro livro religioso além dos livros judaicos, inclusive os chamados 'apócrifos' e os numerosos livros pseudepigráficos, como canônicos." Fonte: Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, pg 1967.
Segundo a Bíblia de Estudo Defesa da Fé, CPAD, 2010, pgs 810-811, artigo de Norman Geisler, assim que Moisés escreveu os cinco primeiros livros da Bíblia, eles foram imediatamente colocados no Lugar Santíssimo (Dt 31:24-26) - é claro que algumas passagens foram adicionadas aos livros posteriormente. O livro de Josué, sucessor de Moisés, foi adicionado à coletânea logo depois da sua morte (Js 24:26). Da mesma forma, os livros de Samuel e os profetas foram adicionados logo depois de terem sido escritos (1 Sm 10:25 e Zc 7:12). Daniel tinha uma coletânea dos livros de Moisés e dos textos proféticos até a sua época, incluindo o de seu contemporâneo, Jeremias (Dn 9:2). Desse modo, o cânon da Bíblia hebraica se formou de modo bastante sólido e coerente, com considerável unidade de critério. Mas e os apócrifos? Segundo Norman Geisler tais livros não pertencem ao cânon original por diversos motivos:
1 - Ao contrário dos livros do "primeiro cânon", os apócrifos não têm uma reivindicação, explícita ou implícita, de que são inspirados por Deus - alguns até mesmo afirmam que não são proféticos (2 Macabeus 9:27 e 14:41); 2 - Eles foram escritos entre 250 a.C. e o século I d.C., mas, segundo o judaísmo, o Espírito da profecia tinha se afastado de Israel por volta de 400 a.C.; 3 - Flávio Josefo forneceu os nomes e números do Antigo Testamento judaico, correspondendo exatamente aos 39 livros do Antigo Testamento da Bíblia que uso (Against Apion, 1,8). O judaísmo, produtor desses livros, nunca os aceitou na Bíblia hebraica; 4 - Jesus e os apóstolos jamais citaram os referidos apócrifos como sendo obras inspiradas; 5 - Muitos pais da igreja dos quatro primeiros séculos da igreja cristã não aceitaram esses livros como inspirados; 6 - Jerônimo distinguiu enfaticamente o caráter não inspirado dos apócrifos; 7 - A aceitação desses livros no Concílio de Trento carece de alguns esclarecimentos: segundo Geisler, eram os judeus, e não os cristãos, que deveriam determinar o cânon do Antigo Testamento, a decisão foi tomada tarde demais (Século XVI d.C.) e foi tida pelos motivos errados, como questões doutrinárias e uma oposição enérgica à Reforma.
Conclusão:
Existem motivos para que os apócrifos estejam na Bíblia? Sim. Quais? Eles possuem, de modo geral, conteúdos de bom caráter doutrinário, histórico e literário, suficientes para edificar grandemente o leitor - para o católico existe, ainda, a questão da autoridade da própria Igreja. Existem motivos para que os apócrifos não estejam na Bíblia? Sim. Quais? A percepção judaica, o testemunho de alguns trechos e personagens do Novo Testamento, os pensamentos de alguns Pais da Igreja e a própria natureza de alguns dos livros. Os apócrifos são importantes? Sem dúvida! Tais livros dão um reforço gigantesco para o entendimento de períodos importantíssimos do relato bíblico e extra-bíblico. Podemos confiar nos apócrifos? De modo geral, sim. Os pontos internos que causa atrito são pouco numerosos - os textos, quase na sua totalidade, apresentam questões válidas. Devemos fazer guerra por causa dessa questão? Não, não me parece necessário. Das questões que causam divergência entre as igrejas Protestante e Católica essa é uma das menores. Devemos ler os apócrifos? É lógico que sim, mas aconselha-se um entendimento inicial do Novo Testamento, para analisar as questões neles apresentadas de modo adequado - na verdade, qualquer leitura do Antigo Testamento é perigosa se desprendida do conhecimento do Novo. No mais, que a leitura dos textos, o entendimento do testemunho interno deles e da Bíblia, a análise da história de sua consideração como "deuterocanônicos" e os demais aspectos que o leitor julgar relevantes, orientem-no para um entendimento pessoal bastante sólido sobre essa questão.
Natanael Pedro Castoldi
Leia também:
Leitura sugerida sobre a o Cânon do Antigo Testamento e a Septuaginta: Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizadores: Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Capítulo 10, Roger T. Beckwith, Vida Nova, 2013, pgs 71-81 e 159-168.
Tem aqui mais algum material de estudo ;)
ResponderExcluirhttp://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/deuterocanonicos
Obrigado pelo trabalho
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