Uma das coletâneas de livros mais mal compreendidas pelo público leigo, sem dúvida. O Antigo Testamento, observado sob a perspectiva dos tendenciosos e emotivos olhos do Século XXI, tem sido apedrejado contínua e agressivamente, sendo considerado um livro sanguinário e primitivo. Já trabalhei sobre o assunto nas postagens "A Bíblia e a Ética" e "Deus e a Guerra", mas entendo ser necessário um trabalho mais específico sobre o assunto. Tire as suas próprias conclusões.
Contexto histórico: agora que a ala mais leiga e numerosa da crítica das Escrituras descobriu que é necessário se contextualizar antes de aplicar julgamentos sobre questões antigas, seguidamente ouvimos a seguinte alegação: "para o cristão tudo se resolve contextualizando, sendo essa uma forma de amenizar os erros bíblicos." Ora, qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento e consciência histórica, capacidade de interpretar textos e a coerência pregada pelos fundamentos básicos de Direito, saberá que é imprescindível contextualizar tudo o que se analisa, mesmo tendo se dado uma década atrás - é pretexto para a vilania anticristã denunciar o uso da exegese e da hermenêutica em prol de um entendimento menos bruto do Texto Sagrado. Isso não significa que o contexto histórico e cultural justifica tudo, pois a própria Bíblia prega a existência de uma consciência universal de "certo e errado", mas, de qualquer forma, não podemos julgar prontamente questões culturais normativas em países do outro lado do mundo ou de um longínquo período. Na verdade, as mesmas pessoas que julgam tendenciosamente tudo o que discordam, se ofendem amargamente quando são julgadas de semelhante modo ("preconceito"). Precisamos da coerência da verdade, da evidência, não do emotivo "achismo".
Concepção de guerra e religião no Mundo Antigo: a religião mergulhava em todos os aspectos da vida no Mundo Antigo, inclusive, e mais do que qualquer coisa, na guerra. As divindades das nações do Velho Mundo saíam engrandecidas e mais bem aceitas quando o povo que as cultuava vencia uma batalha, enquanto as divindades do perdedor eram difamadas e envergonhadas. Todas as vitórias militares eram imediatamente associadas ao deus do povo vencedor e não havia maior humilhação do que a de profanar o templo da divindade do inimigo derrotado, demonstrando de modo inquestionável a superioridade dos deuses do lado bem-sucedido por sobre os fracassados. Os soldados não somente representavam o seu país ou o seu rei, mas eram emissários dos próprios deuses, segundo se pensava, e era principalmente através da guerra que as religiões se expandiam até para além das fronteiras de seus países, por meio da fama, ou regrediam, subjugadas e difamadas. Embora o Deus de Israel sempre trabalhou de modo largamente diferente dos demais cultos do Velho Mundo ("A Bíblia e as Suas Revoluções"), era imprescindível para a manutenção da soberania israelita pelos seus territórios (e sua sobrevivência) e para o reconhecimento do judaísmo no seu devido contexto, que os israelitas vencessem diversas batalhas. Ao contrário de nossos dias, nos quais o povo detentor das maiores proezas bélicas é o mais desprezado e odiado, nos tempos do Antigo Testamento até os derrotados tendiam a prestigiar a divindade do povo vencedor - os feitos militares eram a fonte de maior honra e glória naqueles dias. Nesse sentido, não podemos usar nossa percepção sobre as guerras, fomentada pelos traumas das Primeira e Segunda Guerras Mundias e da Guerra do Vietnã, como parâmetro de julgamento para as guerras da Antiguidade.
A História da Redenção, que culminou em Jesus Cristo, carecia, no contexto pré-cristão, de uma nação geográfica e reconhecida. Num mundo no qual o Espírito Santo ainda não podia habitar o ser humano, as formas de Deus convencer tanto israelitas quanto gentios se davam através de apelos externos, muitos necessariamente aceitáveis para os padrões do Mundo Antigo, como a vitória militar. A verdade que é Deus prometera prosperidade para Israel naqueles tempos, como estímulo e resultado da obediência e, portanto, o chamariz preferido do Criador naquele período se dava através do fortalecimento econômico e da excelência moral - coisa que foi dificultada e comumente pendeu para o apelo bélico por intermédio da desobediência de Israel e da irredutibilidade das nações pagãs.
A Bíblia descreve o que aconteceu, não necessariamente o que foi aprovado: a Bíblia não é um livro parcial, onde se encontram apenas histórias selecionadas para se criar um ambiente perfeitamente atraente para que o leitor acredite em suas palavras. Ela é honesta com a história de Israel, com seus pobres, juntamente com os podres de seus maiores heróis. É aqui que se dividem os que, com coerência, vivem no mundo real e saber discernir doutrinas de histórias, e os que, procurando pretextos para não crer, mergulhados num infantil mundo de ilusões, enfiam tudo propositalmente na mesma "caixinha". Os narradores bíblicos "tratam do mundo real, e o descrevem como ele era, com toda a sua ambiguidade corrupta e decaída. Não devemos confundir realismo com aprovação ética." Fonte: Bíblia de Estudo Defesa da Fé, CPAD, 2010, pg 130.
A Conquista de Canaã deve ser entendida pelo que ela foi: de todas as passagens mal compreendidas do Antigo Testamento, a história da Conquista de Canaã é a mais famosa. Ela é usada pelos críticos das Escrituras como pretexto para toda o desprezo pelo cristianismo: "com base nela os cristãos podem matar qualquer um", "ela justifica as maiores atrocidades", "não creio que um Deus bom possa permitir algo assim". Já cansei de "rinocerontes" em teologia e história tentando falar sobre a Bíblia, já cansei de gente sem nenhum estudo procurando destruir a Palavra (leia "A Ditadura dos Rinocerontes"), mas, vamos lá, mais uma vez!
1 - Tratou-se de um evento limitado. As narrativas da conquista descrevem um período particular da longa história de Israel (lembremos que muitas outras guerras do Antigo Testamento ocorreram sem a aprovação divina). Já me deparei com o argumento de que, assim como os israelitas encontraram justificativas divinas para seus atos, os membros de uma certa religião famosa pelos seus atos terroristas pode encontrar em seu livro sagrado, mas a diferença é que estes últimos possuem ordenanças para uma dominação mundial em prol da qual lhes é lícito fazer uso de forças bélicas, ou seja: a abertura para o uso da força física não se enquadra em nenhum espaço temporal ou geográfico delimitado, ao contrário do que ocorreu na Conquista de Canaã, resumida no período necessário para vencer os povos que haviam ocupado as terras que legalmente pertenciam aos descendentes de Abraão, que, juntamente com seus filhos, comprara basicamente todos os territórios cananeus.
2 - É possível que o relato tenha sido exagerado. Assim como outras nações do Oriente Médio, Israel poderia ter uma retórica de que guerra que, eventualmente, excedia a realidade.
3 - Tratou-se de uma punição moralmente aceitável. Agostinho dizia que o "pecado não punido, por si só, é um mal" e que, portanto, a punição do pecado se reflete num "bem", de modo que a punição dos cananeus resumiu-se num bem e não num mal. Fonte: O Enigma do Mal, John W. Wenham, Vida Nova, 2012, pg 30. Os cananeus eram povos especialmente depravados, praticantes do infanticídio, da prostituição cultual e de outras formas de devassidão sexual e sacrifícios humanos, de modo que interromper a existência dessas culturas traria mais benefícios do que malefícios para a História Humana. A iniquidade de Canaã foi prevista (Gn 15:16) e descrita em termos morais e socais (Lv 18:24; 20:23; Dt 9:5; 12:29-31). "Há uma imensa diferença moral entre a violência que é arbitrária e a violência infligida na estrutura moral da punição".
4 - Deus fez a mesma coisa com Israel. Deus usou Israel para punir os cananeus, mas disse que, se os israelitas se comportassem da mesma forma que eles, também seriam severamente julgados (Lv 26:17; Dt 28-25-68). Quando finalmente Israel sacrificou bebês, foram igualmente destituídos de Canaã, primeiramente Israel (Reino do Norte), por intermédio dos assírios, e, algum tempo depois, Judá, por meio da Babilônia.
5 - Existe um aspecto profético nessa Conquista. Assim como Sodoma e Gomorra e o Dilúvio, Canaã pode ser considerada como uma narrativa prototípica, que prenuncia o que está por vir.
"Olho por olho": para muitos tal lei tem sido usada como o resumo do padrão moral do Antigo Testamento, mas a realidade não comporta isso. Não se trata de uma autorização para vingança ilimitada, pelo contrário: através de tal princípio se estabelecia a ideia jurídica de proporcionalidade - a punição não deve exercer em gravidade a transgressão. Se compararmos o restante da Lei do Antigo Testamento aos outros códigos de leis contemporâneas (babilônicos, assírios e heteus), percebemos um interesse notavelmente humanitário, especialmente pelos excluídos ("viúvas, órfãos e estrangeiros"). A Lei de Israel operava com prioridades éticas da vida humana acima da propriedade material, e as necessidade humanas acima dos direitos civis.
- As Leis de Eshnunna: Eshnunna, a leste da Babilônia, cidade dominante da Mesopotâmia por volta de 1800 a.C., legou um código de leis razoavelmente curto que ajuda a compreender a origem da Bíblia, mostrando que ela não veio à existência de forma isolada de seu ambiente político e cultural mais amplo (por exemplo, a lei a respeito de um boi perigoso e a responsabilidade de seu proprietário, encontrada nas Leis de Eshnunna, assemelha-se à Êxodo 21:28-32), dando a entender que a Torá fora escrita, realmente, em tempos bastante antigos. Além da sofisticação das leis ser bem maior na Torá, há um detalhe discrepante bastante evidente entre os dois códigos: Eshnunna celebra a bravura e os méritos do rei Dadusha, enquanto Deuteronômio 9 enfoca a fraqueza e a indignidade de Israel, enfatizando, portanto, a graça de Deus.
- As Leis Hititas: tais leis chegaram a nós em duas versões, a primeira da época do Reino Antigo (1600-1400 a.C.) e a segundo do Reino Médio e do Império (1400-1200 a.C.). A Leis Hititas contemplam vários temas que encontram eco na Bíblia: brigas que resultam em mutilações ou homicídios intencionais (Êx 21-12-27); casamentos e dotes (Êx 22-16-17); roubo, especialmente de animais (Êx 22:1-15); incesto e relações sexuais ilícitas (Lv 18). Há porém uma divergência, em geral, maior do que uma convergência (para os hititas, se um homem assassinado for encontrado na propriedade de outra pessoa, o proprietário perderá sua casa, sua propriedade e ainda pagará uma multa de 6.040 ciclos de prata; se o cadáver estiver em campo aberto, a vila que estivar ao alcance de 4,8 Km é que pagará a indenização, enquanto Dt 21:1-9 diz que, nesse caso, os anciãos da vila mais próxima deveriam oferecer um sacrifício e jurar que não tinham conhecimento do autor do crime, assim se vendo livres da culpa). As Leis Hititas revelam que longos e complexos códigos de leis já existiam por volta do II milênio a.C., confirmando que Êxodo e Deuteronômio podem datar de um período antigo.
- Leis médio-assírias: no Século XX foram encontrados vários tabletes cuneiformes na antiga Assur, atual Iraque, datadas, provavelmente, do reinado de Tiglate-Pileser I da Assíria (1114-1076 a.C.) - o que se sabe é que tais tabletes são cópias de documentos mais antigos, tidos por volta dos Séculos XIV ou XV a.C. As leis se referem essencialmente a assuntos da vida particular, como roubo, herança, casamento, lei familiar, bruxaria, fornicação, falsa acusação, irrigação, direitos de propriedade, aborto, blasfêmia e assim por diante. Uma exemplo de lei é: "Se a esposa de um homem sair de sua casa e for a outro homem, onde ele resido, e ele fornicar com ela, sabendo que ela é a esposa de outro homem, o homem e a esposa serão mortos", o que entra em paralelo com Levítico 18:20 e Deuteronômio 22:22, mas, noutros casos, as leis médio-assírias prescrevem punições mais severas que os mandamentos bíblicos, como o roubo que, por exemplo, era punido com a morte ou com a mutilação das orelhas e do nariz.
Muitas das leis médio-assírias demonstram que os homens tinham mais direitos que as mulheres, por exemplo: se um homem casado estuprasse uma mulher solteira, a esposa dele também seria estuprada, e o homem seria obrigado a se casar com a mulher que ele violentou. O homem também podia, dentro das leis, punir sua esposa com espancamento, chicotadas, arrancando seus cabelos e mutilando as suas orelhas. Nos pontos de divergência entre a Bíblia e essas leis, a Bíblia demonstra maior paridade entre os sexos e um mais alto nível de respeito pela vida humana e pela pureza moral.
- Código de Hamurábi: detalhes você pode ler na postagem "A Bíblia e as Suas Revoluções". O que eu gostaria de ressaltar, segundo a Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, é que "não parece haver nenhuma conexão direta entre Hamurábi e a Bíblia".
Declarações de Merril Frederick Unger sobre a antiguidade da Lei:
"Descobertas de textos de tratados firmados no Oriente Próximo esclarecem muito a forma e a estrutura da aliança de Deus com Israel, conforme registrada em Êxodo, Levítico, Deuteronômio e Josué. Mendenhall e Kline observaram semelhanças estruturais entre a aliança do Sinai e os tratados hititas de suserania. As correspondências atentam a autenticidade da revelação divina a Moisés no monte Sinai."
"Fazem-se comparações entre a lei casuística da aliança mosaica e os códigos mais antigos, como o Código de Hamurábi (1700 a.C.), o Código de Lipit-Ishtar (1875 a.C.) e o Código de Ur-Nammu (2050 a.C.). Existem semelhanças suficientes para confirmar a antiguidade da aliança mosaica - e diferenças ainda mais notáveis para atestar sua singularidade como revelação divina."
Fontes: Bíblia de Estudo Defesa da Fé, CPAD, 2010, pgs 130-131; Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, pgs 179, 267, 271 e 281; Manual Bíblico Unger, Merril Frederick Unger, Vida Nova, 2006, pg 84.
Natanael Pedro Castoldi
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Posso publicar alguns de seu texto em meu site e facebook?
ResponderExcluirObrigado pelo trabalho
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