Há um ramo científico no estudo das Escrituras: a Crítica Textual. A Crítica Textual da Bíblia começou como um recurso que os céticos pretendiam utilizar para provar a falsidade da Palavra, mas sua iniciativa gerou uma força opositora massiva de estudiosos extremamente bem graduados. Atualmente, a Crítica Textual tem mostrado que o texto que hoje temos em mãos é basicamente o mesmo que fora redigido pelos autores originais - especialmente no que se refere ao Novo Testamento. Aprofundemos o assunto.
1 - O que é a Crítica Textual e sua origem:
A Crítica Textual procura estabelecer textos bíblicos que não contenham erros de cópia e que encontrem a máxima proximidade dos autógrafos - uma vez que os originais não mais estão disponíveis, os estudiosos que se envolvem nisso militam em prol do preparo de novas edições do texto bíblico comparando centenas de textos ou cópias antigas escritas à mão. E fontes textuais para tal trabalho não faltam.
Além da análise dos manuscritos antigos disponíveis, os estudiosos da Crítica Textual verificam os âmbitos linguísticos e literários dos documentos acessíveis, objetivando determinar as intenções dos autores originais. Chama-se "exegese" a busca pela circunstância e intenção do autor de determinado texto. Esse entendimento é de grande relevância para o crítico que busca por um texto fidedigno e para o leitor que estiver interessado em entender a Bíblia na sua plenitude.
Orígenes, um dos Pais da Igreja, fez algo parecido com a Crítica Textual, já que é o organizador da Héxapla, uma edição de seis textos do Antigo Testamento (o original hebraico e várias traduções gregas) em colunas paralelas.
Fontes: A Bíblia e Sua História, Stephen M. Miller e Robert V. Huber, Sociedade Bíblica do Brasil, 2006, pg 208.
2 - A importância do número de manuscritos:
Direcionemos o nosso estudo para a Crítica Textual do Novo Testamento. Como já dito, não possuímos mais os manuscritos originais do texto neotestamentário, o que nos faz depender de cópias e cópias das cópias - e temos muitas delas! Ao todo, existem aproximadamente 24 mil manuscritos antigos do Novo Testamento (Por que Confiar na Bíblia?, Amy Orr-Ewing, Ultimato, 2008, pg 43), o que nos coloca diante de centenas de milhares de variantes textuais entre os documentos. Como saber a forma do texto original, se existem mais variantes entre as cópias do que o total de palavras do Novo Testamento? Aí que está a questão: o elevado número de documentos antigos faz com que o Novo Testamento tenha muito mais apoio do que qualquer outro livro da Antiguidade.
A verdade é que quase a totalidade das variantes entre os manuscritos diz respeito a questões de pouca ou nenhuma importância. Geralmente correspondem a alterações na ordem das palavras numa frase, no uso de diferentes preposições, conjunções e partículas, nas preposições que acompanham verbos, ou meras modificações de natureza puramente gramatical - apenas a milésima parte do Novo Testamento, há mais de um século, ainda não estava assegurada pela crítica; mais atualmente, F. F. Bruce afirmou que as poucas variantes que subsistem não afetam nenhum ponto importante, seja histórico, questão de fé ou de prática.
Como é possível usar da Crítica Textual para solucionar as variantes? Existem manuscritos muito antigos e de melhor qualidade. O Novo Testamento estava completo já por volta do ano 100 (e a maioria dos livros já existia há 20 ou 50 anos) e as melhores cópias que dispomos são do século IV (embora existam manuscritos do século II e fragmentos até de meados do século I) - uma distância muito pequena, se comparada ao espaço de tempo que está entre a redação e a cópia mais antiga dos demais documentos da Antiguidade, cuja distância geralmente fica em 1,5 mil anos. Assim, tomando os documentos mais antigos, considerando os melhores e analisando, por exemplo, os 5,5 mil manuscritos gregos inteiros e fragmentados e os quase 13 mil manuscritos das versões, é possível verificar qual é a construção mais adequada para cada frase do texto neotestamentário. Por comparação entre os documentos, não resta dúvida sobre quase nenhuma palavra.
3 - O que aconteceu com os manuscritos originais do Novo Testamento?
Escritos em papiro, que não é mais durável que o papel, nenhum documento neotestamentário original sobreviveu. A produção de um manuscrito exigia recursos e um preparo especial, fazendo com que as redações dos apóstolos e evangelistas fossem lidas e relidas incontáveis vezes pelos primeiros cristãos, até se desfazerem por completo - é claro que, antes de se perderem, elas foram devidamente copiadas. Além disso, devemos considerar as perseguições que recaíram sobre os cristãos no início da Era Cristã, responsáveis pela destruição de muitos documentos - e esse pode ter sido um dos destinos para alguns dos autógrafos do Novo Testamento.
4 - Fontes documentais:
O principal recurso da Crítica Textual é o manuscrito antigo. O bom andamento dessa ciência depende de um bom número de manuscritos antigos de qualidade. Segue a lista dos principais:
a - Manuscritos:
Papiros:
Foram catalogados, até agora, 96 papiros. Exceto 1 e 2 Timóteo, todos os livros do Novo Testamento aparecem nos papiros, mesmo que a maioria não se veja em sua totalidade. Os mais antigos manuscritos neotestamentários conhecidos estão nessa categoria. Vejamos os principais:
- Papiro de Chester Beatty I: consiste em 30 folhas de um códice que continha os quatro evangelhos e Atos - teria, então, 220 folhas. O documento data do século III.
- Papiro de Chester Beatty II: são 86 folhas de um códice das epístolas de Paulo, contendo, originalmente, 104 folhas. Faltam as epístolas pastorais. Sua data está entre o final do século II e o início do século III.
- Papiro Chester Beatty III: consiste em 10 folhas de um códice do Apocalipse - originalmente possuía cerca de 32. É do século III.
- Papiro Rylands 457: tal papiro apresenta parte de João 8:31 a 33 e dos versículos 37 e 38. Sua forma de escrita o coloca no início do século II (cerca de 130 d.C.). Henry Guppy, com algum exagero, disse que tal documento deve ter sido escrito "quando a tinta do autógrafo original mal estava seca'.
- Papiro Bodmer II: abrange todo o evangelho de João, especialmente os capítulos 1 a 14, que ocupam 104 folhas com poucas lacunas - os capítulos 15 a 21, originalmente em 46 folhas, estão muito deteriorados. Foi escrito no final do século II ou no início do século III.
- Papiros Bodmer VII e VIII: preserva o mais antigo texto de 1 e 2 Pedro e Judas, além de outros textos relevantes. Remete ao século III ou IV.
- Papiros Bodmer XIV e XV: restaram 102 folhas de um total de 144. Apresenta a maior parte de Lucas e uma boa parte de João, além de pressupor um cânon dos quatro evangelhos. É do século III.
Unciais:
São chamados de unciais os manuscritos que começaram a ser preparados em pergaminho quando o papiro caiu em desuso. O número de unciais catalogados está em 299, indo até o século XI, cobrindo cerca de sete séculos. Vejamos os mais importantes:
- Códice Sinaítico: o manuscrito contém 347 folhas com boa parte do Antigo Testamento e a totalidade do Novo Testamento. Remete ao século IV.
- Códice Alexandrino: consiste em 773 folhas, contendo quase todo o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Data do início do século V.
- Códice Vaticano: trata-se de um manuscrito de excelente qualidade. Consiste em 759 folhas de um códice que tinha, originalmente, 820. Apresenta quase todo o Antigo Testamento e a maior parte do Novo - faltam Hebreus 9:15 a 13:25, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filemon e Apocalipse, que podem ter formado cadernos adicionais, embora desaparecidos. Foi escrito no início do século IV, mas apresenta uma forma de texto que deve ter circulado no Egito antes do ano 200.
- Códice Efraimita: continha originalmente toda a Bíblia, tendo sobrado apenas 64 folhas do AT e 145 do NT - todos os livros neotestamentários estão nele representados, com exceção de 2 Tessalonicenses e 2 João. Foi redigido no século V.
- Códice Beza: é o mais antigo códice bilíngue do NT (grego e latino). Originalmente continha entorno de 510 folhas, sobrando atualmente 406. Foi escrito no final do século V ou no início do século VI.
- Códice Claromontano: outro manuscrito bilíngue. Contém 533 folhas muito bem escritas. Foi redigido no século VI.
- Códice Laudiano: trata-se de um manuscrito bilíngue de Atos contendo 227 folhas. Foi escrito, provavelmente, no final do século VI.
- Códice Washingtoniano: compreende 187 folhas dos quatro evangelhos. Foi escrito no século V.
- Códice Korideto: é um manuscrito dos evangelhos do século IX, contendo 249 folhas. O texto de Marcos reflete um documento muito antigo, bastante semelhante ao utilizado em Cesaréia por Orígenes e Eusébio, nos séculos III e IV.
Minúsculos:
São os manuscritos de escrita minúscula preparados do século IX ao XVI. A maior parte está em pergaminho. Até hoje foram catalogados 2.812 minúsculos. Não possuem muito valor crítico, pois são todos medievais.
- Família Lake: os manuscritos desse grupo foram escritos nos século XII e XIV. Uma análise do evangelho de Marcos mostrou que o texto preservado nesses manuscritos geralmente concorda com o Códice Korieto, parecendo vir de um texto corrente nos séculos III e IV.
- Família Ferrar: os manuscritos desse grupo foram escritos entre os séculos XI e XIII. Essa família apresenta afinidades com o tipo de texto que circulava em Cesaréia nos tempos de Orígenes e Eusébio.
- 33: foi escrito no século IX e apresenta grandes similaridades com o Códice Vaticano.
- 565: trata-se de um manuscrito dos evangelhos escrito no século IX.
- 1739: trata-se de um manuscrito de Atos e das epístolas, contendo originalmente todo o Novo Testamento. Foi escrito no século X. O escriba utilizou como base textos do século IV, material utilizado por Orígenes e um antiquíssimo texto que circulava em Alexandria no final do século II.
- 2053: escrito no século XIII, contém Apocalipse.
Lecionários:
Os lecionários são documentos de uso litúrgico, para acompanhar os cultos e as datas especiais. Até o momento foram catalogados 2.281 lecionários - eles começaram a surgir entre o final do século III e o início do século IV, mesmo que o mais antigo fragmento deles seja do século V. De um quarto a um terço dos lecionários conhecidos são de Atos e das epístolas; perto de uma centena combina Atos, os evangelhos e as epístolas; e todos os demais são dos evangelhos.
Óstracos:
Os óstracos são pequenas porções de texto escritas em restos de cerâmica. São conhecidos 25 óstracos do Novo Testamento. Eles não possuem muito valor para a Crítica Textual.
Talismãs:
São objetos em madeira, cerâmica, papiro ou pergaminho, e se destinavam a servir de proteção contra o mal. Existem 9 talismãs do Novo Testamento, datados do século IV ao XIII. Possuem pouco valor para a Crítica Textual.
b - Antigas versões:
Depois dos manuscritos gregos, as mais importantes fontes para a Crítica Textual são as antigas versões, ou seja, as primeiras traduções. As versões começaram a aparecer por volta de meados do século II. As mais antigas são a Siríaca, a Latina e a Copta. Embora os mais antigos manuscritos das versões não ultrapassem o início do século IV, ou o final do século III, elas evidenciam um estágio de desenvolvimento não posterior ao final do século II.
Segundo a minha fonte, "as primeiras versões permitem-nos retroceder a uma forma do NT que, do ponto de vista cronológico, aproxima-se quase como nenhuma outra do texto original e possibilitam conclusões seguras a respeito do texto grego que se achava em uso nos lugares onde foram feitas."
Siríaca:
As primeiras traduções do grego provavelmente foram feitas para essa língua, isso já por volta do ano 150. São cinco traduções siríacas principais:
- Siríaca Sinaítica: tal tradução remonta meados do século II e se encontra em dois manuscritos dos evangelhos. O primeiro deles é do século IV.
- Siríaca Curetoniana: o outro manuscrito, também escrito no século IV.
- Siríaca Peshita: aparece em mais de 350 manuscritos, muitos remontando ao século V ou início do século VI. A tradução foi preparada no século V. Contem todo o NT, menoes 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse.
- Siríaca Palestinense: a data da tradução é questionável, mas geralmente se sugere o século V. Seus documentos mais importantes datam dos séculos XI e XII, contendo os evangelhos, partes de Atos e das epístolas paulinas.
- Siríaca Filoxeniana: foi preparada nos anos de 507 e 508. Soi conhecidos dois manuscritos, contendo 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse.
- Siríaca Heracleana: ela é conhecida mediante cerca de 50 manuscritos, datados a partir do século VIII. Foi preparada em 616 d.C.
Latina:
Existem duas versões latinas: a Antiga Latina, englobando as traduções feitas até o século IV, e a Vulgata Latina, preparada por Jerônimo entre 383 e 405 d.C. Evidências indicam que as versões latinas começaram a surgir no século II. Até hoje foram catalogados cerca de 70 manuscritos da Antiga Latina - nenhum, porém, apresenta o NT completo. Eles cobrem um período que vai do século IV ao século XIII. Da Vulgata existem cerca de 10.000 manuscritos, sendo o mais antigo do século V - podendo ter sido copiado quando Jerônimo ainda vivia. O melhor manuscrito antigo da Vulgata é o Códice Amiatino, do século VIII.
- Códice Palatino: data do século V e contém os quatro evangelhos.
- Códice Fleury: data do século V. Possui uma quarta parte de Atos, porções das epístolas católicas e o Apocalipse.
- Códice Bobiense: escrito no final do século IV ou no início do século V. Apresenta sinais que indicam ter sido cópia de um manuscrito do século II. O documento consiste em 96 folhas com partes de Mateus e Marcos.
- Códice Varcelense: foi escrito no século IV. Segundo uma tradição, ele foi copiado por Eusébio, bispo de Vercelli, martirizado em 370 ou 371. Contém os evangelhos.
- Códice Veronense: data do século V e contém os quatro evangelhos.
- Códice Beza: foi escrito no século V e contém os evangelhos e Atos.
Copta:
As traduções do Novo Testamento para o copta começaram no século III.
- Copta Saídica: é conhecida através de manuscritos completos e fragmentos datados do século IV em diante, compreendendo quase todo o NT. A tradução data do início do século III.
- Copta Boaírica: tal tradução foi feita no século IV e é testemunhada por cerca de 100 manuscritos, sendo um do próprio século IV.
- Copta Fiúmica: há poucos manuscritos dessa versão e um dos mais antigos data do século IV, contendo João 6:11 a 15:11.
- Copta Acmímica: um dos mais antigos dessa versão é datado entre 350 e 375 d.C., contendo o evangelho de João.
Outras versões:
Há diversas outras versões antigas do NT, como a Gótica, a Armênia, a Etíope, a Geórgica, a Nubiana, a Arábica e a Eslava. A maioria dessas versões não foi traduzida do grego, com exceção da Gótica, do século IV.
c - Citações patrísticas:
O Novo Testamento também foi preservado nas diversas citações dos Pais da Igreja, feitas em seus sermões, comentários, cartas e outros trabalhos. A maior parte delas está entre os séculos IV e V. É possível reconstruir praticamente todo o Novo Testamento só com essas citações - só com Orígenes isso quase é possível. Justino Mártir citou o NT 387 vezes; Irineu, 1.819 vezes; Clemente de Alexandria, 2.406 vezes; e Orígenes, 17.922 vezes. Alguns dos Pais da Igreja (e inimigos dela) mais importantes para a Crítica Textual são:
- Agostinho (354-430);
- Ambrósio (337-397);
- Atanásio (295-373);
- Basílio (330-379);
- Cipriano (200-258);
- Cirilo (370-444);
- Cirilo (315-386);
- Clemente (155-215);
- Eusébio (265-339);
- Gregório (330-394);
- Hipólito (170-235);
- Irineu (140-202);
- Jerônimo (340-420);
- João (345-407);
- Justino (100-165);
- Marcião (90-160);
- Orígenes (185-254);
- Taciano (110-172);
- Teodoro (350-428);
- Tertuliano (150-220).
Fonte: Crítica Textual do Novo Testamento, Wilson Paroschi, Vida Nova, 2008, pgs 15-21 e 43-73.
Conclusão:
Diante dessa fartura de documentos, considerando a sua antiguidade, a qualidade de muitos, a abrangência de alguns e a quantidade, somando isso às versões e às citações patrísticas, fica difícil sustentar a ideia de que perdemos completamente a redação conforme nos foi deixada pelos apóstolos e evangelistas. O texto dos autógrafos está preservado nesses manuscritos e é possível identificá-lo com grande grau de segurança através de comparações e outros métodos da Crítica Textual. Com base em coisas assim, é que hoje se pode desferir uma declaração tão poderosa quanto a sequinte:
"Assim, depois dos quase 500 anos do texto impresso e das mais de mil edições já surgidas desde Erasmo, além das centenas de outros estudos técnicos, a crítica textual do NT chegou a um estágio tal de desenvolvimento que a concordância entre os estudiosos quanto ao texto crítico moderno é espantosamente grande, ao passo que ao número de variantes ainda contestadas é por demais reduzido. E, mesmo que uma nova edição venha a divergir em alguns pormenores do texto que é hoje geralmente aceito, as descobertas e pesquisas mais recentes mostram que nosso NT grego 'deve estar muito próximo do texto primitivo dos escritos do NT, que foram introduzidos no cânon'. O Texto Recebido é um caso completamente encerrado." Tal dizer se encontra depois de um resumo da história da produção da Bíblia impressa e suas versões.
Fonte: Crítica Textual do Novo Testamento, Wilson Paroschi, Vida Nova, 2008, pg 139.
Natanael Pedro Castoldi
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Obrigado pelo trabalho
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