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A Ciência, a Igreja e o Islã

-> Apresentação e Índice
Muitas pessoas não compreendem que o que define "ciência" não é a mera descoberta de fenômenos e o desenvolvimento de tecnologias. Por ciência temos um sistema de busca pelo conhecimento, pautado em método, repousando sobre uma determinada filosofia - a saber, de que a verdade sobre os seres e fenômenos pode ser conhecida e de que o mundo em que vivemos é real e possui leis constantes e que podem ser vislumbradas e entendidas. O método tradicional de pesquisa científica é, obviamente, o "método científico", que valoriza a observação do fenômeno, o experimento e a repetição do mesmo para a tomada de conclusões críveis - os precursores desse pensamento foram os monges Roger Bacon, padre franciscano (1214-1294), e Tomás de Aquino, frade dominicano (1225-1274). Mesmo que uma cultura tenha indivíduos de grande potencial, eles dificilmente buscarão pelas "leis da natureza" se acreditarem que o mundo natural é habitado e governado por milhões de pequenas divindades que controlam, ao seu bel prazer, cada fenômeno.
Fonte: Revista Aventuras na História, Coleção Grandes Guerras, Ed. 8, Abril, novembro de 2005, pg 52.

Observação: esse é um artigo sobre a história da origem da ciência. Nesse caso, não se trata de opinião do autor.

1 - Por qual motivo apenas o Ocidente produziu a ciência?
A Índia antiga produziu grandes cirurgiões, mas não chegou a desenvolver a medicina científica; no século V, o indiano Arybhata sugeriu que a Terra gira entorno do seu eixo e ao redor do Sol, mas sua proposta não gerou debates como no Ocidente. Uso da Índia como primeiro exemplo, pois minha fonte inicial é Vishal Mngalwadi, erudito indiano convertido ao cristianismo. Segundo ele, a Índia, mesmo tendo uma riquíssima tradição histórica de intelectuais, não foi a precursora da ciência porque sua cosmovisão sustentava que o mundo visível não passava de uma ilusão, um sonho. Esse tipo de perspectiva levou tanto os sábios hindus quanto budistas a perder a motivação filosófica - eles buscavam um paraíso psicológico. A mesma busca se deu no Ocidente cristão até o século XVI, quando que "uma porção maior da cristandade teve condições de ler a Bíblia e a levou a sério" - daí em diante se espalhou o entendimento de que, por exemplo, a saída do Éden foi a perda de um paraíso literal, terrestre, e não apenas uma alegoria, como se pensava anteriormente. A paixão Ocidental pela ciência começou precisamente quando os cristãos dedicaram-se no resgate do mandato que Deus deu ao homem: que ele dominasse a natureza.

Os pioneiros da ciência acreditavam que o mundo natural era um reino real, não uma dimensão mágica, dominada por espíritos e demônios. Seu pressuposto era de que o mundo é inteligível, pois Deus o "criou de maneira racional, ordenada e regido por leis naturais" - o mundo não fora criado por uma divindade maligna para fazer a humanidade cair no engano através do contato com a "matéria impura". Os cristãos logo compreenderam que a matéria, tendo sido criada por Deus, não é maligna e que, portanto, é digna de ser estudada - daí começaram a se perceber como gerentes da Criação, podendo administrá-la para o benefício do futuro e da humanidade. Essa mentalidade nasceu com a crítica ao racionalismo aristotélico - o método científico presume que a lógica humana tem valor, mas que os fatos observador estão acima de suas conclusões particulares. Essa lógica é usada, por sua vez, para interpretar e encontrar sentido nos fatos - teorias são formuladas para entender o mundo. Essas teorias, porém, só são científicas se fazem predições quantitativas empiricamente verificáveis ou falseáveis. Para esse sistema funcionar, a ciência precisa de objetividade, de observação e de uma constante atitude cética.

Percepções panteístas impossibilitam o desenvolvimento científico, pois "se Deus e a natureza são um, então a natureza não tem um Legislador, nem há 'leis da natureza' para serem descobertas". Na percepção da natureza como Gaia, a ordem natural não é nada além de uma "dança" imprevisível, sem leis matemáticas quantificáveis. A China antiga também teve seus grande intelectuais e promoveu admiráveis descobertas e inventos, mas igualmente não pôde desenvolver a ciência. Segundo Alfred North Whitehead, a ciência originou-se diretamente do ensino bíblico de que o cosmo é produto da "racionalidade inteligível de um ser pessoal" - a China, portanto, não desenvolveu a ciência porque na maior parte da sua história não nutriu a firme convicção em um Criador todo-poderoso. A posição quanto ao pensamento chinês foi sustentada por Joseph Needhem, historiados marxista: após sua pesquisa, ele concluiu que "não havia boas razões geográficas, raciais, políticas ou econômicas para explicar o fracasso da China para desenvolver a ciência" - os chineses "não desenvolveram a ciência porque nunca lhes ocorreu que esta fosse possível".

Gregos, egípcios, chineses, indianos e muçulmanos pré-modernos nutriram incontáveis percepções da natureza, observando e catalogando fatos, desenvolvendo aptidões, acumulando e transmitindo conhecimento. O astrônomo, geógrafo e poeta grego Eratóstenes (276-196 a.C.), mediu a circunferência da Terra; Arquimedes (287-212 a.C.) desenvolveu princípios matemáticos sobre alavancas, polias e parafusos; Hiparco (190-120 a.C.) calculou o ano solar em 365 dias e 6 horas... mas, ainda assim, os antigos nunca geraram uma cultura da ciência. Ainda que tivessem observado atentamente o mundo natural, eles não se esforçaram para verificar empiricamente as suas explicações - na tentativa de explicar o mundo, eles se valeram da intuição, da lógica, dos mitos, do misticismo e do racionalismo, sem atentar para o empirismo. Por exemplo: a lógica baseada na intuição, de Aristóteles, afirmava que, se duas pedras fossem atiradas de um penhasco, a que tivesse o dobro do peso da outra cairia duas vezes mais rápido - nenhum estudioso aristotélico antigo chegou a testar empiricamente essa afirmação para constatá-la ou reprová-la, até que Galileu Galilei (1564-1642), tomando como fundamento a Bíblia, testou a afirmação e a reprovou.

Intuição, lógica, observação, experimentação, informação, técnica, especulação e a análise de textos imbuídos de autoridade são coisas que precedem o Século XVI, mas elas, por si mesmas, não podem constituir uma ciência sustentável. Foi só na Europa cristã que a astrologia se transformou em astronomia, que a alquimia virou química e que a matemática tomou o posto de linguagem da ciência - e isso só aconteceu nos séculos XVI e XVII, quando a cristandade ocidental levou a sério Gênesis 1:28. É lógico que Gênesis já era conhecido há milhares de anos quando a ciência propriamente dita passou a existir - a novidade dos séculos XVI e XVII, segundo Peter Harrison, foi uma leitura literal do relato, não alegórica:

"Apenas quando a narrativa da Criação foi despida de seus elementos simbólicos é que o mandamento de Deus a Adão pôde ser relacionado a atividades mundanas. Se o jardim do Éden fosse apenas uma alegoria sublime, tal como Fílon, Orígenes e mais tarde Hugo de São Vítor sugeriram, não haveria muito incentivo em tentar restabelecer um paraíso na terra. Se o mandamento de Deus a Adão de cultivar o jardim tivesse um significado primariamente simbólico, como Agostinho acreditava, então a ideia de que o homem deveria estabelecer o paraíso pela jardinagem e pela agricultura não teria tido o impacto que teve na mentalidade do século XVII."

2 - As limitações do pensamento grego antigo:
Primeiramente, a Bíblia não é um livro Europeu e, por esse motivo, dos séculos V ao XI, os eruditos europeus tinham a tendência de observar o mundo sob a ótica platônica. Segundo Platão, o Reino das Ideias é o mundo real e o mundo material não passa de uma sombra. Vishal Mangalwadi exemplifica Platão da seguinte forma: mesmo que as casas tenham grandes diferenças entre si, todas elas são consideradas "casa" porque são sombras da mesma "Ideia" do que é "casa" que existe no mundo real, não material ou espiritual das ideias. Cada objeto real pode ter um número incalculável de sombras no mundo material. Tendo esse princípio em mente, os eruditos medievais inicialmente estudavam a natureza da sombra para, acima de tudo, entender a realidade espiritual.

Essa influência grega propiciou a percepção de que o mundo material é inferior ao espiritual, apenas uma imagem transitória e decadente do mundo espiritual, eterno e imutável. A natureza era considerada basicamente um livro pictórico escrito por Deus para transmitir uma mensagem superior: todos os animais, plantas, rochas e fenômenos eram, sobretudo, símbolos destinados a nos levar a compreender melhor as realidades espirituais - eles observavam a formiga mais para extrair ensinamentos e virtudes do seu comportamento trabalhador, do que para compreendê-la como o ser que é em si mesma. O método alegórico foi incorporado justamente para extrair do mundo material, inferior, esses ensinamentos superiores. Esse método fora desenvolvido pelos filósofos gregos para auxiliar na interpretação dos seus poemas, mitos e das suas lendas, objetivando "higienizar narrativas moralmente problemáticas". Fílon, o judeu alexandrino, adotou o método hermenêutico alegórico para encontrar a filosofia grega no Antigo Testamento.

Os cristãos alexandrinos, seguindo o exemplo de Fílon, adotaram a alegoria para ler tanto a Bíblia quanto o mundo natural e, obviamente, essa postura prejudicou a compreensão da natureza. A ciência ocidental só passou a existir quando a Bíblia começou a ser lida literalmente, sem ser obscurecida pela alegoria - a ciência desabrochou quando as Escrituras e a natureza passaram a ler lidas objetiva ou indutivamente, com o objetivo de descobrir a mensagem que traziam por elas mesmas. Segundo Peter Harrison, a ciência só veio a ser tornar "revolução" porque os Reformadores protestantes insistiram que a palavra de Deus inserida na Bíblia e na natureza deve ser interceptada de maneira literal. Os teólogos católicos estabeleceram as bases da ciência nos séculos XIII e XIV e a Reforma estabeleceu a autoridade intelectual da Bíblia e disseminou na cultura popular os ensinamentos da Palavra a respeito de Deus, da criação, do homem, do pecado, da salvação, do conhecimento, da educação e do sacerdócio universal de todos os crentes - ideias cruciais para a Revolução Científica.

Segundo Rodney Stark, 50 dos 52 mais importantes cientistas que foram pioneiros na Revolução Científica eram cristãos. 60% dos homens que criaram a ciência foram cristãos devotos - os demais eram "cristãos nominais". 

3 - A ciência e a Bíblia:
 Ainda que Tomás de Aquino e Roger Bacon tenham sido os responsáveis pelas base do pensamento científico, os fundadores do método científico foram Francis Bacon (1561-1626) e Galileu Galilei (1564-1642), confiando mais na observação empírica do que na lógica ou autoridade humana. Os dois intelectuais cristãos defendiam a acurada leitura dos "dois livros de Deus", a Bíblia e a natureza. Sobre isso, Francis Bacon declarou:

"Pois nosso Salvador disse: 'Vós errais não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus' (Mt 22:29), deixando-nos livres para estudar, se quisermos nos livrar do erro: primeiro, as Escrituras, que revelam a vontade de Deus, e depois as criaturas [ciência natural], que expressam seu poder, sendo o último uma chave para o primeiro: não apenas abrindo o nosso entendimento para conceber o verdadeiro sentido das Escrituras pelas noções gerais da razão e das regras do discurso, mas principalmente por abrir nossa crença, ao nos fazer meditar sobre a onipotência de Deus, que está assinada e esculpida principalmente em suas obras."

Galileu Galilei também declara algo nesse sentido:

"Pois a Bíblia Sagrada e os fenômenos da natureza procedem igualmente da palavra divina, a primeira, dita pelo Espírito Santo, e os últimos como executores obedientes do mandamento de Deus."

Os Estados Unidos da América, como afirma a Declaração de Independência, 1776, foram fundados sobre as "leis da natureza e da natureza de Deus". A abertura intelectual do Ocidente se deu, fundamentalmente, por uma teologia resultante da aproximação da Bíblia e do afastamento de Platão e do Islã. Os nomalistas medievais perceberam que "a doutrina de Deus faz mais sentido que uma lógica subserviente à observação empírica" - ao evitarem a heresia averroísta de pensar que Deus agiu de acordo com uma necessidade intrínseca, sendo a criação um ato totalmente livre do Criador, que configurou a natureza conforme o Seu desejo, descobriram que a ordem do universo não pode ser conhecida por dedução de quaisquer princípios, mas apenas por observação e por revelação. Dessa forma, os nomalistas constataram que o mundo físico só poder ser discernido de modo empírico - Deus poderia fazer tudo o que desejasse independente de qualquer ordem racional que pudesse guiar a mente humana em suas predições, de modo que nada pode ser previsível em absoluto. 

Os filósofos gregos, como Aristóteles e Platão, fitaram a natureza para vislumbrar verdades metafísicas universais, trabalhando de modo abstrato e dedutivo, disso oferecendo conclusões que se tornaram pressuposições "a priori" de gerações futuras, vindo a acorrentar a mentalidade europeia, que só foi solta quando a doutrina da liberdade de Deus foi discernida com base na Bíblia, propiciando o método científico. Além disso, a percepção da natureza boa do mundo material criado por Deus, tornou o elemento material digno de ser estudado. Disso, Vishal Mangalwadi conclui: "A ciência é um estudo objetivo ('secular') das leis da natureza por causa de sua inspiração bíblica como criação de Deus, não apesar disso." A ciência não veio a existir sobre a pressuposição de um materialismo sem Deus.

Até mesmo as teologias bíblicas do Pecado, da Queda e da Salvação influenciaram o desenvolvimento inicial da ciência. Diante da percepção dos males que afligem o homem e o mundo, a conclusão mais óbvia dos antigos, especialmente dos gnósticos, foi a de que a matéria é inerentemente má, de modo que Deus não pode encarnar-Se num corpo humano. O Novo Testamento, em especial João, refuta com poder essa percepção gnóstica e, concordando com o Antigo Testamento, deixa claro que a matéria é boa. Movimentos influenciados por filosofias orientais observam os problemas físicos como meramente ilusórios, enquanto a Palavra os apresenta como problemas reais, resultantes da rebelião de Adão e Eva - a desordem do mundo natural veio a dificultar o mandato humano de domínio da natureza. Essa compreensão, apoiada no sacrifício expiatório de Cristo e na Sua ressurreição, fez o homem compreender que pode vir a restaurar a si mesmo através da entrega ao Salvador e ao mundo através das artes e das ciências, conforme declara Francis Bacon.

Quando a Bíblia começou a ser entendida com mais profundidade, se observou que Adão e Eva conheceram a natureza tal como ela era antes da Queda e que a Queda resultou na perda do conhecimento da natureza, de modo que, para recuperar a imagem do Criador, era necessário ao homem ter a mente renovada e, redescobrindo o mundo, iniciar a sua restauração para a unidade original, isso através do domínio e do controle da natureza.

Mosteiros budistas e hinduístas até hoje não ensinam ciência, mas as universidades europeias - originadas da própria Igreja - a desenvolveram e a divulgam. Por qual motivo isso acontece? Os estudiosos bíblicos aprenderam há muito tempo que a leitura do "livro da natureza" era mais importante do que a análise de livros em grego e em latim - estes foram escritos por homens, mas o primeiro foi escrito pelo próprio Deus. Paracelso disse que o livro da natureza deveria ser lido com mais atenção e proeminência do que as obras de Galeno, Avicena e Aristóteles, pois ao primeiro "Deus mesmo fez, escreveu e encadernou". Houve até os que ousaram afirmar que o estudo da natureza deve preceder o das próprias Escrituras.

Muitos filósofos e cientistas de hoje aproximam-se do niilismo, pois duvidam da possibilidade de se encontrar respostas para as "grandes questões" da humanidade. Quase todos os fundadores da ciência, porém, acreditavam que as "grandes questões" já estavam devidamente respondidas nas Escrituras e que a sua função, dada por Deus, era de estudar as "questões pequenas e específicas" da natureza - como eram e funcionavam, como poderiam ser dominadas para o proveito do homem. Nesse sentido, eles não usavam do método científico para encontrar a Verdade sobre tudo, pois eles estavam convictos que as verdades centrais já estavam reveladas na Palavra - seu método existia para conhecer os seres e fenômenos e, com isso, recuperar o conhecimento e o domínio do homem sobre a natureza.
Fonte: O Livro que Fez o Seu Mundo, Vishal Mangalwadi, Vida, 2013, pgs 259-276, 281-287.

4 - Os muçulmanos e a ciência:
Sendo direto, conforme aquilo que define ciência, podemos afirmar que o Islã não produziu ou desenvolveu a ciência. Mas precisamos ser honestos quanto ao legado muçulmano para o posterior advento da Revolução Científica. 

A Europa Ocidental perdeu quase todos os seus registros da Cultura Clássica quando o Império Romano do Ocidente finalmente foi arruinado - muito do que sobrou foi resgatado e copiado por monges em mosteiros isolados, protegidos dos bárbaros, especialmente os monges da Irlanda que, segundo Thomas Cahill, salvaram a Civilização Ocidental (Como os Irlandeses Salvaram a Civilização Ocidental, Thomas Cahill, Objetiva, 1999) -, havendo uma quantidade significativa de material depositada em cidades antigas do Norte da África, da Ásia Menor e do Oriente Médio - regiões que os maometanos vieram a conquistar em suas campanhas iniciais, confiscando esses documentos gregos e latinos. Outra fonte considerável de manuscritos clássicos o Islã encontrou na Igreja Oriental, que preservara e copiara as obras gregas. Do grego, os muçulmanos passaram esses documentos para o árabe e, com base neles, desenvolveram significativos avanços na astronomia, na medicina, na alquimia e na tecnologia. Quando o mundo muçulmano estava no seu período dourado (séculos VIII ao XIII), sendo muito maior do que a Europa cristã e estando bastante adiantado no desenvolvimento do conhecimento, diversas escolas, observatórios e bibliotecas foram fundadas, assim como hospitais e hospitais-escola. Já no século VIII, o califado de Abbasid montou uma magnífica biblioteca em Bagdá. Ao incorporarem o uso do papel, mais barato, bibliotecas imensas foram fundadas na vastidão das suas terras, como a de Córdoba, com aproximadamente 400 mil volumes. Até o século XVI, os maiores centros na arte de produção de livros ficavam em Herat, Afeganistão, em Tabriz e Shiraz, Irã. A arte da caligrafia se tornou tão importante para os muçulmanos, que eles resistiram ao uso da imprensa, mantendo mais de 100 mil copistas para o abastecimento das bibliotecas e dos estudiosos. Obviamente essa resistência cobrou um preço. 

Com os avanços muçulmanos dentro da Europa cristã, com a conquista de Portugal e Espanha, principalmente, esses manuscritos árabes que continham o conhecimento clássico foram sendo apresentados aos europeus. Ao longo dos séculos, muitos estudantes universitários da Europa compravam material muçulmano para o seu enriquecimento técnico e filosófico. Ainda assim, foi a Europa cristã, e não o mundo muçulmano, que produziu e desenvolveu a ciência. Por qual motivo isso aconteceu?

Primeiramente, o fracasso dos muçulmanos medievais no desenvolvimento da ciência se deve à sua postura acrítica ao pensamento grego. Nos séculos XII e XIII, a pseudociência grego-islâmica quase tragou o Ocidente - o que salvou a Europa da cosmovisão grega, incompatível com a Bíblia, foi a sua leitura das Escrituras. Mesmo que o Islã creia num Criador todo-poderoso, faltou-lhes a Bíblia - ainda que Maomé tenha declarado a Bíblia como divinamente inspirada, ela só é lida pelos maometanos para ser criticada. 

Por volta do século X, os compiladores de uma obra islâmica, Rasa'il, abraçaram a ideia grega de que o mundo é Gaia, abrindo caminho para percepções panteístas, cíclicas, animistas e mágicas, que vieram a permear a cosmovisão islâmica, infectando o Islã com a perspectiva platônica de que o mundo é compreensível a partir das formas eternas dos seus objetos. Para o grego, conhecer algo é conhecer a sua forma e, concebendo a forma, se discerne a essência, culminando em conclusões definitivas, que não se mudam pela experiência. O necessitarianismo metafísico aristotélico e islâmico tornou desnecessária a verificação empírica do "conhecimento verdadeiro". Os mais destacados filósofos muçulmanos medievais, como Avicena (980-1037) e Averróis (1128-1198), acabaram se tornando inflexíveis defensores de Aristóteles, tendo as suas ideias como completas e infalíveis - a observação que contradissesse Aristóteles estaria, de pronto, errada.

Os teólogos europeus também estudaram todos os grandes livros, recebendo e valorizando o conhecimento grego, mesmo que ele viesse por meio dos muçulmanos. A diferença é que os europeus, tendo um compromisso com a Bíblia, se colocavam a criticar as posições gregas quando elas contradiziam as Escrituras. A sua cosmovisão bíblica se desenvolveu sobre Aristóteles, purificando a sua confiança na razão humana da influência animista e fortalecendo-a ao fundamentá-la na imagem de Deus. Sobre isso, M. B. Foster declarou:

"A primeira grande contribuição da teologia cristã ao desenvolvimento da moderna ciência natural foi o fortalecimento que ela forneceu ao elemento científico do próprio Aristóteles; em particular, forneceu uma justificativa para a fé, que para Aristóteles era um pressuposto sem base, já que a razão na natureza pode ser descoberta pelo exercício da razão no homem. O elemento 'racionalista' na filosofia da natureza de Aristóteles era incoerente com o 'animismo'que ele manteve lado a lado com aquele. Esse animismo é completamente incompatível com a doutrina cristã, e precisou ser completamente eliminado de qualquer teoria da natureza que pretendia ser coerente com uma teologia cristã."

As conquistas de Alexandre, o Grande, alastraram as ideias gregas para lugares muito distantes, como a Índia, mas em diversas culturas, o animismo, o gnosticismo e o misticismo suprimiram a razão e a evidência. A Bíblia, por sua vez, reforçou a confiança dos gregos na mente humana e removeu a irracionalidade do animismo. Ainda segundo Foster, o nascimento da ciência se deve mais a discordância de Aristóteles do que a concordância sobre a utilidade da razão - essa discordância, aponta ele, são os elementos não-gregos, ou seja, bíblicos, a que os teólogos medievais recorrerem em sua crítica ao pensamento helenístico.

Dentre os elementos não-gregos, ou bíblicos, que favoreceram o advento da ciência, está a percepção de que o cosmos não é eterno e de que Deus não faz parte do universo - estando Ele fora da matéria e sendo livre para criar qualquer coisa, também não existem formas eternas. Intelectuais como Alberto Magno (1206-1280) introduziram a ciência e a filosofia árabes no mundo medieval e as criticaram, compreendendo que o necessitarianismo de Aristóteles contradizia a liberdade e a onipotência de Deus - pela dedução filosófica, se pressupunha o que o Criador precisava ou não realizar. No Concílio Eclesiástico de 1277, foi rejeitada formalmente a ideia grego-islâmica do que "Deus pode ou não pode fazer" - a crença na liberdade total de Deus acabou por se tornar um dos pilares do método científico: precisamos observar o que Deus fez, não presumir o que ele poderia ou não poderia fazer.

A posição do Concílio de 1277, conclamado pelo bispo de Paris, Etienne Tempier, e pelo arcebispo da Cantuária, Robert Kilwardby, foi reforçada por uma crítica ainda mais forte, realizada pelos teólogos franciscanos nomalistas, como William de Ockham (1285-1349). Ockham, através do princípio da "Navalha de Ockham", derrubou a perspectiva aristotélico-muçulmana, fundamentando a lei natural e todos os valores éticos na vontade de Deus, não na necessidade metafísica ou nas formas. O defensor de Ockham, Pierre d'Ailly (1350-1420), influenciou Martinho Lutero e Zwinglio, levando a perspectiva de Ockham sobre a Bíblia para a Reforma Protestante e, assim, estimulando a ciência empírica.

O fato é que o empenho muçulmano no desenvolvimento do conhecimento e das tecnologias perdeu fôlego. O tipo de pesquisa científica que os maometanos desenvolveram entrou em declínio por  intermédio, principalmente, de mudanças políticas: o conhecimento floresceu em tempos de paz e prosperidade, vindo a enfraquecer quando os recursos foram canalizados para a defesa e a agricultura. A situação piorou quando os europeus requisitaram o Novo Mundo, aquecendo o comércio e a riqueza, levando os governantes muçulmanos a perder a sua proeminência global. Outra causa do declínio do conhecimento entre os maometanos se deu por seu sistema de organização social: os muçulmanos favoreciam, em suas escolas, a transmissão do conhecimento local, de um estudioso para o outro ou em pequenos grupos, estimulando a estabilidade. As universidades europeias, por sua vez, sustentavam o debate acadêmico, pautado no desafio e na subversão do conhecimento estabelecido, atividade que os maometanos ortodoxos tinham como herética, já que valorizavam a aprendizagem como meio de aperfeiçoamento espiritual.
Fontes: O Livro da Ciência, GloboLivros, 2014, pgs 13-14; Uma Breve História da Ciência, Ronei Clécio Mocellin, Nova Didática, 2000, pgs 34-35; Uma Breve História da Ciência, Patricia Fara, Fundamento, 2014, pgs 69-76; O Livro, Uma História Viva, Martyn Lyons, 2011, pgs 47-49; O Livro que Fez o Seu Mundo, Vishal Mangalwadi, Vida, 2013, pgs 277-281.

Conclusão:
É comum ouvir ou lermos que o cristianismo apenas obscureceu a ciência, atrasando-a, mas, como vimos, aconteceu justamente o oposto! A única civilização do mundo a ter desenvolvido por conta a ciência foi justamente aquela que orbitava entorno da Igreja e da Bíblia. Também é comum nos depararmos com o argumento de que os muçulmanos foram muito mais longe do que os cristãos no desenvolvimento científico e que, se não fosse o seu declínio, hoje estaríamos muito mais desenvolvidos, o que também não é verdade. É claro que a produção de tecnologias mais primitivas não necessariamente depende de uma visão de mundo pautada na ciência, mas muito do que temos hoje, que faz parte das nossas vidas diárias, é fruto direto de uma visão científica de mundo, que critica, que observa, que experimenta, que tem o mundo material como bom, útil, e dominável para o bem da própria natureza e do homem. A visão grego-islâmica de mundo não foi a causa do desenvolvimento tecnológico os maometanos, mas ela certamente limitaria avanços mais profundos se não fosse contestada e suprimida, na Europa, pela percepção bíblica de mundo. Bastaram apenas alguns séculos depois de a Palavra começar a ser lida e entendida literalmente para termos a ciência como "revolução", para presenciarmos o incrível momento histórico conhecido como Revolução Científica.

Leve na mente algumas questões sobre o artigo:
- Ao contrário do que muitos dizem, a filosofia grega provavelmente não levaria o homem aos avanços científicos que presenciamos na história dos últimos séculos.
- A Bíblia foi a peça fundamental para o esclarecimento, aperfeiçoamento e purificação do pensamento grego. O pensamento grego, por si só, não produziu ciência, pois ele se alastrou no mundo muçulmano e até a Índia e a ciência só veio a existir na Europa, onde havia uma forte tradição cristã.
- Os fundadores da ciência não a percebiam como fonte de autoridade para se descobrir a verdade sobre tudo. A teologia mantinha seu posto central no tratamento das "grandes questões" e a ciência se ocupava com as "pequenas", restritas mais ao funcionamento dos elementos e o seu domínio.

Natanael Pedro Castoldi

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